domingo, 30 de novembro de 2003

LIBBY NÃO EXISTE

Fora a Pauline Kael, minha crítica favorita tem nome e sobrenome: Libby Gelman-Waxner. Desde 87 ela assina uma coluna absolutamente hilária na "Premiere", que é, lógico, o único bom motivo para se ler a revista americana. Só tem um problema: ela não existe. Parece que é o pseudônimo de Paul Rudnick, roteirista de "Será que ele é?". Bom, isso nunca me incomodou. Passei anos desconfiando que a Libby não poderia ser uma pessoa real, e ainda assim saboreando cada uma de suas palavras. Ela é minha inspiração. Ela entende que, numa época em que os filmes se tornaram superficiais, não tem sentido analisá-los como se fossem obras de arte. A maior parte dos críticos, por não ter mais o que analisar, contentou-se em resumir histórias. E dá-lhe texto sisudo e sem um pingo de criatividade dissecando, sei lá, a carreira do Eddie Murphy. Pra Libby, qualquer coisa com ar condicionado já é uma obra-prima.

E o que faz a Libby tão especial? Acima de tudo, o senso de humor e a recusa em se levar a sério. Ao contrário dos outros críticos, ela não tenta impressionar seus leitores com um conhecimento ilimitado sobre cinema. Ela sabe que é fútil, egocêntrica, maldosa – e irresistível. E ela tampouco incorre em outro defeito dos resenhistas, que é subestimar a inteligência alheia e explicar tintim por tintim. Ou o leitor entende as referências e o típico humor gay/judaico de Libby, ou dança. É por isso que ela tem tantos admiradores quanto detratores. Pelo menos uma vez por ano, ela reserva uma coluna pra comentar as cartas que recebe. Diz que fica comovida que tantos leitores se dêem ao trabalho de lhe mandar uma mensagem no meio de suas sessões de eletrochoque. Um leitor escreve que seu cachorrinho estava engasgado, mas ele lhe mostrou um artigo da Libby e o cão vomitou na hora. O comentário da Libby: "e eu não recebo nem um obrigado por salvar uma vida?". Uma moça chamada Jennifer a manda ler intelectuais franceses, "Cahiers du Cinéma", para aprender a criticar. Libby responde: "E tudo isso vindo de uma Jennifer". Claro que também jorram mensagens apaixonadas e prêmios.


Nos artigos, Libby quase sempre fala do marido, um ortodontista de meia-idade, e de seus filhos. Em várias ocasiões, ela pede pra sua mãe redigir a coluna, ou sua psiquiatra, ou sua melhor amiga... Por exemplo, para falar de como o cinema trata as mães, a mãe de Libby pretende escrever um livro com o título "Hollywood, Vá já para o seu quarto!". Vejamos o que Libby tem a dizer sobre alguns assuntos. Desculpe a tradução meio capenga, que é minha.


Sobre Michelle Pfeiffer: Meu marido me disse que, se ele tivesse que escolher entre eu e a Michelle, ele me daria um divórcio generoso e me deixaria ficar com o apartamento.


Sobre cinema: Cinema é sobre o quanto Dennis Quaid e Daniel Day-Lewis me desejam intimamente, mas como sou casada, eles só podem expressar seu tesão tirando a roupa nas telas e rezando para que, em algum lugar, eu esteja vendo.


Sobre Daniel Day-Lewis: Daniel é como o Laurence Olivier com genitais.


Sobre Sharon Stone: Em "Invasão de Privacidade", Sharon não quer ir à academia porque ficaria envergonhada com todos aqueles espelhos; isso vem de uma mulher que já teve câmeras nos lugares em que a maior parte de nós mal teve maridos.


Sobre Jim Belushi: Minha filha me pediu pra explicar a carreira do Jim Belushi. Falei que Jim tinha um irmão muito famoso chamado John que morreu e que o governo paga as empresas que fazem filmes pra contratar o Jim, como uma espécie de memorial.

Sobre fortuna: Noto que, depois que um diretor ganha seus primeiros 50 milhões de dólares, ele geralmente faz um filme sobre como é difícil ser uma alma sensível.


Sobre Elisabeth Shue em “Despedida em Las Vegas”: Elisabeth é muito talentosa, mas ela é a imagem que meu marido faz de uma prostituta, ou seja, uma loira maravilhosa que te ouve atentamente, te traz lanchinhos, te idolatra, te beija na testa e te põe pra dormir.


Sobre "Pescador de Ilusões": "Pescador de Ilusões" é para o público que achou "Campo dos Sonhos" sarcástico demais. No filme, Jeff Brigdes e Robin Wiliams tiram toda a roupa à meia-noite no Central Park, deitam-se no chão e olham as estrelas. O filme faz disso um ato de liberação mágica, mas os atores ficam se contorcendo para evitar nudez frontal, o que tira um pouco da magia. (...) Queria que passassem uma lei federal com estatutos sobre o que o Robin Williams deveria ser proibido de fazer na tela: 1) sorrir enquanto chora; 2) Abraçar um outro homem, que fingirá estar envergonhado; 3) tirar suas roupas como ato de liberdade.


Ainda sobre o pobre Robin Williams: Robin está ficando tão carinhoso que logo os únicos papéis disponíveis pra ele serão de Papai Noel ou Coelhinho da Páscoa.


Sobre sexo selvagem nos filmes: Se um carinha quisesse fazer sexo selvagem comigo, eu lhe diria a mesma coisa que digo a minha filha de sete anos quando ela insiste em ganhar um brinquedo ultramoderno: querida, se você ainda quiser isso daqui a um ano, aí veremos.


Sobre filmes de época: Já notou como Inglaterra e Estados Unidos são bons em coisas diferentes? Por exemplo, os ingleses são bons em fazer filmes de época densos e inteligentes, e os americanos são bons em boicotar esses filmes.


Sobre Lassie: O roteirista deve escrever como se todos os astros fossem a Lassie. Lassie não podia falar, atuar, ou agir de qualquer forma humana – ela é o modelo para os maiores astros de hoje. Imagina se ela tivesse chegado pro seu agente e falado, Ó, no meu próximo filme, quero fazer um réptil.


Sobre o merchandising abusivo da FedEx em "Náufrago": Esse tipo de posicionamento de produto é irritante. Fiquei imaginando o que aconteceria se o Tom Hanks trabalhasse pra O.B.


Ainda sobre "Náufrago": O filme nunca mostra o que o Tom Hanks faz relativo a sexo na ilha, e fiquei esperando que ele começasse a encarar aquela bola de vôlei de modo estranho e talvez lhe pagasse uma bebida.


Sobre "Babe, O Porquinho Atrapalhado": Depois de um tempo de “Babe”, senti como se uma nuvem de fofura radioativa houvesse coberto a Terra.


Sobre "Formiguinhaz": "Formiguinhaz" é como "O Triunfo da Vontade" passado no esgoto. ["O Triunfo da Vontade", para quem não sabe, é tido como propaganda nazista].


Sobre reviravoltas no roteiro: Adoro histórias com reviravoltas, tal qual "Édipo Rei", onde o herói acaba descobrindo que matou seu pai e casou-se com a mãe – ouvi dizer que a Disney está preparando uma refilmagem em forma de musical que se chamará "Ooops!".


Sobre "Proposta Indecente": Woody Harrelson dá uma palestra mostrando que até um tijolo pode aspirar ser mais que um tijolo – o que, imagino, explica o que Woody está fazendo como astro de um filme. (...) Demi Moore volta de manhã, após dormir com o Robert Redford por um milhão, e você espera o Woody gritar Yupi! A gente tá rica!, e a Demi perguntar, a gente?!


Sobre filmes populares: "Ghost" e "Uma Linda Mulher" representam típicas fantasias femininas – uma hora ou outra, toda mulher sonha em ser uma prostituta casada com um milionário, ou ser uma mulher cujo marido morreu.


Bem, agora que meus leitores conhecem um pouquinho da Libby, tomara que me entendam melhor. A diferença entre eu e ela, fora o talento, é que eu sou de carne e osso (muito mais carne do que osso, e tenho dúvidas se ainda tenho osso, mas...).

EU FUI AO FESTIVAL. E VOCÊ?

O 2o Catarina Festival de Documentário, que aconteceu entre 13 e 18 de agosto, foi maravilhoso. Tudo bem, esta é a opinião de alguém que foi convidada pra participar de dois júris (foi a glória!), então é claro que é subjetiva. Como, aliás, toda opinião. Mas se você perdeu o festival, você não sabe o que perdeu. Foram vários dias de intensa exibição de curtas brasileiros em Balneário Camboriú. A escola foi ao cinema, visando a formação do público que a gente tanto precisa; houve debates, homenagens, entrevistas, balcões de negócios – um evento de grande porte mesmo, super bem organizado pela Araucária Produções. E tudo praticamente de graça pro espectador. Digo “praticamente” porque todo dia, às 21 horas, havia uma mostra oficial que passava todos aqueles filmes de dar água na boca que o circuitão de SC insiste em não passar. Teve “Edifício Master”, “Ônibus 174”, “Uma Onda no Ar”, “Durval Discos”, “Desmundo” e “Cidade de Deus”. O preço da entrada? Três reais, e a renda ia pra projetos sociais.

Infelizmente, não deu pra ficar lá a semana inteira, e só pude ver um décimo do que o Festival oferecia. Vou falar do que vi, deste décimo. Mil perdões por não tratar da mostra de vídeos, mas não tive tempo de vê-los. Então, a mostra dos filmes documentários: foram doze curtas, e eu só não gostei de dois. Os outros realmente eram de ótima qualidade. O que eu mais gostei foi “Rua da Escadinha 162”, de Márcio Câmara, do Ceará. É sobre um colecionador de discos que discorre sobre tudo e contra todos – sobra pro Cinema Novo, MPB, museus, críticos... Por exemplo, uma das dezenas de provocações que ele faz é dizer que a classe média sempre foi preconceituosa (isso a gente já sabia, né?) e que, na década de 30, ela chamava o povo de Zé Povinho. Hoje ela usa o famoso “povão” pra designar a plebe ignara. A gente pode não concordar com o colecionador, mas ele não deixa de ser um personagem fascinante. Cinematograficamente falando, lógico, o filme não apresenta inovações, e por isso só levou o prêmio de melhor som. Tudo que o cineasta precisou fazer foi encontrar uma figura incrível e ligar a câmera. Mas, pensando bem, quantas figuras incríveis você conhece?

Os filmes que conquistaram o júri foram dois: “À Margem da Imagem” e “Visionários”. O primeiro, de Evaldo Mocarzel, de SP, levou melhor filme, roteiro e montagem, e é quase um metadocumentário sobre pessoas que vivem na rua e que são filmadas e fotografadas constantemente, a maior parte das vezes sem sua permissão. A cena em que esses moradores se olham no espelho, através da lente da câmera, é comovente. Sabe olhar-se no espelho, essa coisa que você e eu fazemos várias vezes ao dia sem reparar? Pra quem não tem casa isso é uma raridade. Este documentário também foi o vencedor do prêmio do público. O segundo filme, que recebeu o prêmio da crítica e também melhor direção e fotografia por parte do júri, é “Visionários”, de Fernando Severo, do Paraná, e mostra santuários construídos por dois sujeitos, já falecidos, para se protegerem do apocalipse. Um deles montou estátuas que, pra mim, lembram os Guerreiros de Xi’an. Tá tudo lá, no norte do PR, sendo destruído pelo tempo e pelo homem, só pra variar.

Outro documentário muito legal, que a gente não premiou por pouco, foi “Vaidade”, de Fabiano Maciel, RJ. Este exibe a venda de produtos da Avon no meio do garimpo paraense, e como isso interfere na auto-estima do pessoal. Uma das entrevistadas faz coro à maioria das menininhas dos shoppings: ela diz que preferiria estar morta a ser feia e passar desapercebida. Outro documentário, pra qual o júri deu um prêmio especial, foi “O Chiclete e a Rosa”, de Dácia Ibiapina, do DF, sobre crianças em Brasília vendendo doces e flores à noite. É um olhar bem otimista e, por isso, original.

E agora pausa pra pergunta crucial: como fazer com que esses belos filmes cheguem até você? Esse foi um dos temas do Encontro dos Críticos, que contou com vários jornalistas importantes de SP e RJ, euzinha aqui, e a contribuição valiosíssima de produtores e diretores. O debate começou morno, já que o público preferiu curtir o sol da manhã de domingo a prestigiar o bate-papo, mas acabou com uma platéia de umas 25 pessoas interessadas e interessantes. Foi muito, muito bom. Voltando à pergunta crucial: não seria lindo se os nossos cinemas, aqueles que não cumprem de jeito nenhum a exigência de passar 28 longas brasileiros por ano (e, quando finalmente se dão ao luxo de exibir um filme nacional, ele fica em cartaz uma semana, caso de “O Homem que Copiava” em Joinville), adquirissem esses e outros curtas e os exibissem antes das explosões e os rachas hollywoodianos da sessão principal? Melhor que isso, só se o circuitão se mexesse agora e tomasse essa atitude antes que alguma legislação o obrigue. E as TVs pagas e abertas, por que não passam os nossos filmes? Ué, elas não são concessões públicas que, além de entreter, deveriam promover a integração nacional e, paradoxalmente, o regionalismo?

Uma das observações mais pertinentes foi feita pela Cloris Ferreira, diretora geral do Festival. Ela quis saber onde estava o público. Mesmo com ampla cobertura da mídia, principalmente deste caderno aqui, o espectador não compareceu como deveria. De fato, onde estavam os universitários? Sabe, o pessoal que estuda jornalismo e cinema? Quando os filmes que eles fizerem forem exibidos em festivais (a Univali tem graduação em cinema, e agora a UFSC também), aposto como eles vão querer que alguém assista. Acho que já passou da hora do público pensar que filme brasileiro é sinônimo de pornochanchada e de miséria, ou que documentário é chato. Quem pensa assim provavelmente não vê um filme nacional faz tempo. Chega de preconceitos. Espero que ano que vem aconteça outro Festival, e que você, que deu o azar de faltar neste, possa ir. Insista, Cloris!

CLÁSSICOS: BLADE RUNNER / Vinte anos do futurista noir

Tal qual o Tarantino, meu primeiro emprego foi numa locadora de vídeo. Naquela época (1986), o mercado de vídeo estava engatinhando, e quase todo o acervo era pirata. Pois bem, adivinhe qual era o filme mais requisitado e comentado pela minha seleta clientela? Era "Blade Runner, O Caçador de Andróides". Quatro anos depois do seu lançamento, ele já havia se transformado em grande cult. A gente podia ficar aqui falando horas sobre como mudou o gosto do público consumidor (temo em pensar qual o blockbuster mais popular nas locadoras de hoje), mas não, vamos nos concentrar em "Blade Runner", que agora está completando duas décadas de vida.

Por incrível que pareça, "BR" foi mal recebido por vários críticos americanos, e ainda hoje há quem torça o nariz pra ele. Aqui no Brasil, é difícil encontrar quem não o considere uma obra-prima. Pra mim, não dá pra fazer uma lista dos melhores filmes de ficção científica sem incluir "BR". Claro que podemos discutir se este clássico recente é ficção mesmo ou se chega mais perto das histórias de detetive da década de 40. Digamos que seja um futurista noir, como nunca se fez outro.

A trama se passa numa Los Angeles chuvosa, feia, poluída, sem o menor resquício de natureza, num futuro não tão distante: 2019. Daqui a quantos anos mesmo? Nesses tempos, teremos carros voadores e colônias terrestres em outros planetas. Construiremos andróides pra trabalhar nas colônias feito escravos, e nossa vasta tecnologia criará diversos tipos de replicantes. Mas daremos uma efêmera existência de quatro anos a esses andróides e embutiremos neles falsas memórias de uma infância que nunca tiveram. Tudo isso pra impedir que comecem a fazer aquelas perguntinhas básicas: de onde vim? Para onde vou? Por quanto tempo? Qual minha finalidade nesse mundo? Alguns andróides se rebelam e voltam pra Terra. Querem conhecer seu criador e ter a resposta pra essas questões. Cabe a um ex-policial desiludido, interpretado pelo Harrison Ford, localizar e eliminar esses replicantes implicantes.


O filme é baseado num livro do Philip K. Dick, "Do Androids Dream of Electric Sheep?", algo como "Andróides Sonham com Carneirinhos Elétricos?". O romance mostra uma civilização desoladora, em que só milionários terão animais de verdade, tão raros que são caríssimos. O resto da população terá de se contentar com bichos sintéticos. Na mesma linha pessimista, vem também de Dick a fonte pros ótimos "Minority Report – A Nova Lei" e "O Vingador do Futuro". O homem tá com tudo. Pena que tenha morrido poucos meses antes do lançamento de "BR" e não pôde usufruir da sua fama cada vez mais crescente. Não me lembro se nos livros dele transparece essa fixação por olhos que existe nos filmes. É impressionante como tem olho focalizado em "BR". Tem olho congelado, olho de coruja, olho que salta das órbitas...

Quando o diretor Ridley Scott (que vinha de "Alien") acabou de montar "BR", o estúdio não gostou. Então os senhores de terno forçaram o Harrison Ford a gravar uma narração e mudaram o final – a derradeira seqüência vem de sobras de "O Iluminado" e, de fato, não tem nada a ver com o clima. Ridley lançou sua versão do diretor em 93 e ela é bem legal, cheia de nuances (talvez o detetive seja um andróide também), mas espero não ser linchada ao afirmar que prefiro o filme de 82. Pessoalmente, adoro a narração do Ford. Ela é tão displicente, tão abertamente descontente, que dá um ar ainda mais vagabundo a "BR", jogando-o definitivamente no noir. E o personagem do Ford é tudo menos heróico. Apanha de todos, é meio covarde, só funciona empunhando uma arma, e está constantemente assustado. Ou seja, é mais humano que os super-heróis a que estamos acostumados. Ford está perfeito. Ele era meu velho conhecido: eu já havia me apaixonado por ele em "Caçadores da Arca Perdida". Mas conhecer o holandês Rutger Hauer (o líder dos andróides) abalou meu coração fiel. Só eles já são dois motivos mais que filosóficos pra ver ou rever o bárbaro "BR".

CLÁSSICOS: OS PÁSSAROS / 40 anos de asas ameaçadoras

Os Pássaros”, meu Hitchcock preferido, está completando quarenta anos de idade. Todo mundo tem, ou deveria ter, um filme entre os mais de cinqüenta que ele dirigiu de que gosta mais. Pra alguns é “Psicose”, pra outros é “Um Corpo que Cai”, ou “Janela Indiscreta”, ou “Intriga Internacional”. São tantas obras-primas que é difícil colocar uma só no pedestal. Pois, pra mim, este lugar está reservado para “Os Pássaros”. Não sei dizer objetivamente o porquê. Posso talvez medir pelo quociente de cenas clássicas. Por exemplo, recentemente revi “O Homem que Sabia Demais” e constatei que o quociente de cenas que se tornaram clássicas é zero. Por coincidência, este é um dos Hitchcocks mais fraquinhos. Agora, pense nos piu-pius. Lembrou dos corvos se acumulando no playground? Os passarinhos invadindo a casa pela lareira? O ataque ao posto de gasolina? Nossa heroína enclausurada numa cabine telefônica? São tantas emoções...
Este terror de 1963 jamais seria feito hoje. Por vários motivos: a primeira agressão dos pássaros (de um só, pra ser mais exata) só acontece bem depois do início. A segunda agressão, então, leva mais um tempão. Imagina, o público atual não tem paciência pra esperar que o suspense se amontoe. Sem falar que os vilões alados hostilizam criancinhas (pecado!). E cadê a explicação bem mastigadinha dizendo por que os pássaros atacam? Ué, e que pouca-vergonha é essa de não ter fim?! E, ousadia das ousadias: onde já se viu um filme de horror sem música?! Então, se mudassem tudo e adaptassem “Os Pássaros” pros dias de hoje, a gente veria o Schwarzza empunhando uma bandeira americana numa mão e uma metralhadora na outra. Penas voando pelos ares. O mundo salvo. Trilha sonora de redenção. Mas, por favor, cuidado com a picaretagem. Se você for à locadora, o atendente pode te perguntar se você quer “Os Pássaros” 1 ou 2. De fato, há uma seqüência tenebrosa de 94 feita pra TV. Ignore-a. E não acredite se o atendente jurar que ambas foram dirigidas pelo Hitchcock, já que o velhinho morreu em 1980. Só se for psicografada.

“Os Pássaros” se baseia num conto de Daphne du Maurier que também é instigante, embora não tenha nada a ver com o filme. O conto é mais rural; o herói é um fazendeiro. Fora isso, Daphne inventa que a fúria alada está acontecendo no resto do planeta, e arrisca um palpite: as marés altas mexem com os bicudos. Pro protagonista da história, segurança e conforto são representados por xícaras na cozinha. É muito legal o que Hitch faz com essas xícaras no filme (elas aparecem completamente bicadas). O diretor, que sempre contribuía nos roteiros, apesar de nunca assiná-los, não dava a mínima pra fidelidade à fonte. Ele lia o livro ou o conto uma vez e nunca mais. Mas digamos que o cerne do conto – o pavor pelo que está bem próximo da gente – encontra-se no filme. Afinal, fazer com que dinossauros soem assustadores parece fácil. Eles são grandões. Baratas são asquerosas, tubarões têm mandíbulas. Agora, como temer inocentes pardais e outras cabecinhas de minhoca?Não sei se o filme assusta os adolescentes de hoje, mais acostumados a uma violência de videogame. Acho que eles se preocupam demais com o realismo dos efeitos especiais. A galera vê “Os Pássaros” e pensa: “Eca! Que mal-feito! Isso não é real!”. Dããã, é óbvio que não é real. Passarinhos não agridem humanos. Desculpe revelar um incrível segredo, mas nada no cinema é real. Como diz o menininho em “Matrix”, não há colher, lembra? E tampouco há porta. Entre a tonelada de material interessante presente no documentário do DVD, a mais-mais é a que mostra que, bem no fim de “Os Pássaros”, quando Rod Taylor abre a porta, com ele e a Jessica Tandy (a velhinha de “Conduzindo Miss Daisy”) segurando uma sangrenta Tippi Hedren (mãe da Melanie Griffith), não há porta. O Rod faz um gesto com a mão como se abrisse uma porta, e a porta simplesmente inexiste. É impossível notar. Sabe como todo mundo que vê “Cães de Aluguel” acha que o bandido realmente corta a orelha do policial? É a ilusão do cinema.

Pra mim, a prova definitiva de que “Os Pássaros” funciona é que quem vê o filme não consegue nunca mais encarar nossos amigos de asas do mesmo jeito. Assim como a gente lembra do tubarão antes de nadar no mar ou de “Psicose” antes de tomar uma ducha, “Os Pássaros” entrou no nosso inconsciente coletivo – há quarenta anos. E foi bom, não foi?
Veja também: O Cineasta que Sabia Demais, sobre o centenário de nascimento de Hitchcock, e a homenagem da Vanity Fair ao diretor.

É HOJE!

É hoje o Oscar, e a única vantagem da Guerra no Iraque é que a cerimônia será mais curta. Já é alguma coisa. Vamos ver se eles cumprem a promessa de dar todos os tapinhas nas costas em duas horas. O Oscar, como se sabe, é uma festa de auto-congratulação. É o jeito de Hollywood olhar pro seu próprio umbigo e dizer: cinemão, você está indo bem, hein?

Dos cinco indicados a melhor filme, o melhor, melhor mesmo, na minha modesta opinião, é “O Pianista”. Mas vai ganhar “Chicago”, que tem mais a cara da indústria. Com o favoritismo do musical, Rob Marshall, o diretor, começa a ameaçar Scorcese, que concorre por “Gangues de Nova York”. Scorcese pode levar a estatueta não porque “Gangues” seja um filmaço (não é), mas simplesmente porque ele é um dos Cineastas Importantes, com letras maiúsculas, que nunca ganhou. Polanski também não, mas até parece que a Academia vai premiar um cara proibido de entrar nos EUA. Se a vida fosse justa, Almodóvar receberia o troféu pelo deslumbrante “Fale com Ela”, faria um mini-discurso contra a guerra e teria o som do microfone cortado. Seria o momento polêmico da noite. Como ele tem chances na categoria de roteiro original, vamos torcer pra que nosso espanhol preferido tenha coragem.

Pra ator, o favoritismo do Jack Nicholson vem crescendo a cada dia. Contra ele, só o fato que parece que foi ontem que ele ganhou por “Melhor é Impossível”. Mas foi em 97. Se não for ele o vencedor, será o Daniel Day-Lewis, a principal razão de se ver “Gangues”. Adrien Brody está perfeito em “O Pianista”, mas o narigudo não tem cacife pra concorrer com quatro pesos pesados.

Já pra atriz, não vai ter pra ninguém. Desta vez a Nicole Kidman enfeita seu banheiro com uma estatueta. Julianne Moore é sempre muito elogiada e um dia a hora dela chega. Ela tem chances pra atriz coadjuvante, se bem que não se fala em outra coisa além da Catherine Zeta-Jones. Sabe quando você sente o clima de favoritismo no dia da entrega? Não dá pra explicar, não é algo tangível. Acho que a Academia está babando pra prestigiar uma beldade tipo Catherine.

De resto, minha previsão é que “Chicago” receberá mais de cinco Oscars, “As Horas” ficará com três ou quatro, “Gangues” com uns dois, “Senhor dos Anéis” idem, mas só em categorias menos relevantes, e “O Pianista”, coitado, sairá com as mãos abanando. Tomara que eu esteja errada, pois seria mais uma daquelas injustiças. Mas, numa época em que um país forte invade um fraquinho sem o aval de ninguém, falar de injustiça é piada.

CRÍTICA: AS PANTERAS 2 / Detonando as Panteras

Ao sair da sessão de “As Panteras Detonando”, encontrei um adolescente ex-aluno meu que havia odiado o filme. Seu comentário foi “Detonaram mesmo!”. Ele, que não tinha visto a primeira aventura, nem acreditou quando eu disse que a seqüência é melhor. Claro, isso não significa que seja boa. Mas é o tipo de gosma que os meninos vão prestigiar por causa das lutas e explosões, e as meninas pelas roupas e penteados (e eu vou ver por quê, ó mistério?). Com um público tão cativo, é de estranhar que o arrasa-quarteirão da vez tenha arrecadado apenas US$ 40 milhões no seu fim de semana de estréia. Parece uma dinheirama, né? Mas a produção custou US$ 125 mi – mais que o PIB de vários países juntos. A gente podia fazer uma listinha de como investir melhor essa fortuna, mas não vem ao caso. Aí, devido ao fracasso do filme, os analistas estão discutindo o desgaste dessas fórmulas de continuações. Zzzz. Já ouvi esse papo antes. Desgastada tô eu, que não conseguiria arrecadar 40 milhões no meu fim de semana de estréia. Minha previsão é que o espectador devidamente lobotomizado continue a lotar sessões pra ver frágeis top-models batendo em cinqüenta armários ao mesmo tempo.

Não vou gastar preciosas linhas falando da trama deste filme dirigido por um tal de McG (que também cometeu o primeiro) porque não há trama. Há pretextos, isso sim. O que vale é colocar Cameron Diaz, Drew Barrymore e Lucy Liu no maior número de cenários sem jamais repetir o guarda-roupa. De vez em quando elas descansam as mãozinhas pra rebolarem pra câmera. E vez por outra um vilão morre (não de morte natural). A principal vilã é a Demi Moore, que está irreconhecível de tão magra e cheia de botox. Ela não consegue mais mexer um lado da face, coitada. A Demi tá com 40 anos e segue em ótima forma: é um monumento à plástica. Lembra dela franzina na década de 80 e em “Ghost”? Lembra dela peituda em “Striptease”? Lembra dela fortona fazendo uma militar? Pois é, agora ela virou tábua de novo. Olha, eu tô muito acima do peso e minha cinturinha de vespa foi substituída pela cinturinha de lesma, mas não sou a única a ficar sem curvas. Essas moças, de tão subnutridas, também perderam as suas. E pensar que uma multidão sonha em ser como elas. Perto das suas colegas de set, a Drew parece obesa. Ainda assim, ela deve estar uns dez quilos abaixo do padrão das mulheres normais.

“Detonando as Panteras” é o tipo de sessão-porrada com treze roteiristas onde os dublês aparecem mais que as estrelas. Mas nas entrevistas à imprensa as atrizes disparam pérolas como “eu fiz minhas próprias cenas de ação” e “treinei seis horas por dia durante seis meses pra aprender a lutar desse jeito”. Ué, mas não é uma seqüência?! Elas não se tornaram experts em artes-marciais já no primeiro filme? Pensei que, depois de tão árduo aprendizado, elas podiam economizar esse tempo e gastar as seis horas diárias no cabeleireiro.

Mas eu não odiei a aventura. As moças são simpáticas, é difícil ficar com raiva delas. Além disso, tem uma cena de discoteca fofinha que me fez lembrar de quando música era feita pra se dançar. E há outras gracinhas. Por exemplo, num esquete inútil num convento, tocam a trilha de “A Noviça Rebelde”. E num outro as panteras surgem como soldadoras ao som de “Flashdance”, entende? Mas, no geral, denotei um pouco de impaciência do público com as cenas de ação. O Fator “Ahhh” extrapolou, e ouvi “Palha” e “Égua” demais. Inclusive, uma espectadora falou com o nojo típico de quem se refere a baratas voadoras: “Eca! Elas voam?!”.

Ah, querem vender pra gente que “Detonando as Panteras” é importante pro Brasil porque o Rodrigo Santoro aparece. Aparece em termos. Ele não tem falas ou expressões, é simplesmente um objeto sexual. Até aí tudo bem, pode-se dizer o mesmo da Cameron Diaz, mas, se o Rodrigo tivesse a mínima relevância na história, seu nome seria citado por algum crítico americano. Acho que ainda não foi dessa vez que um ator daqui da terrinha conquista Hollywood, chuif.

CRÍTICA: O PAGAMENTO / Ajuda-me a esquecer

Fomos ver “O Pagamento”, última empreitada do John Woo, aquele um que é considerado mestre do cinema de ação, e, referindo-se ao título, o maridão quis saber sobre os críticos profissionais que chamaram essa meleca de obra-prima: “Você acha que eles vêem o filme depois de receber o dinheiro ou preferem não se envolver?”. Pois é, o Woo deve ser o diretor asiático vendido a Hollywood mais superestimado do planeta, com o Ang Lee em segundo lugar. Mas, pra ser justa com o Woo, digamos que “Pagamento” não tem nenhuma marquinha pessoal, neca de cinema de autor. Poderia ter sido cometido por qualquer diretor de aluguel. Não sei se foi por isso que o filme fracassou bonito nos EUA. Então, tá: desmistifiquei o mito um (que o Woo é o máximo). Agora passo ao mito dois: filmes baseados em histórias do Philip K. Dick são ótimos. “Blade Runner” é bárbaro, e gosto muito de “O Vingador do Futuro” e “Minority Report”, mas esta coisa aqui quebra o encanto. Mito três: o Ben Affleck é o pior ator do mundo ocidental. Ahn, esse mito é verdade.

Em “Pagamento”, Ben, o Aflito, é um super engenheiro que aceita inventar troços, ganhar uma nota preta, e apagar sua memória mais recente. Essa premissa, a de programar-se para esquecer, é a parte boa do filme, se bem que o maridão não precisa de aparelhinho nenhum para se olvidar do que aconteceu nos últimos três meses. O Aaron Eckhart (aquela gracinha de “Erin Brokovich”) arma com o Ben, que passa o resto do tempo fugindo do FBI e dos vilões, com a ajuda de um envelope cheio de trocinhos que ele mesmo deixou pra ele. Essas bugigangas geram pistas tremendamente estúpidas, mas tudo calculado pra que o público possa adivinhar como elas serão usadas e sentir-se um gênio. É jujuba pro espectador. O único amigo do Ben é interpretado pelo Paul Giamatti, de “Truman Show”. O personagem dele é pior que criança e cachorro em filme, sabe, aqueles que somem no meio pra reaparecer no final. Paul é também personal trainer, personal cientista e personal florista do Ben. “Pagamento” entra em processo de destruição irreversível lá pela metade, quando o Paul se tranca numa dispensa (eu acho que é uma dispensa). Daí pra frente só tem sessão porrada, cenários virtuosos que serão devidamente detonados, cenas obrigatórias de perseguição de carros, e todos os caros clichês que dois estúdios podem comprar (sim, o filme foi financiado não por um, mas dois estúdios, o que virou moda). É o jeito d’eles dizerem: olha só como pensamos em você. Gastamos todo esse dindim. Não somos legais?

As piores falas da produção são “Red Socks” e “Peguei!”, e você vai ter de ver a bomba se quiser entender o contexto, porque eu que não vou explicar. Mas o que importa é que ambas são proferidas pelos lábios carnudos da Uma Thurman, que faz o par romântico do Ben. Acho que seu papel de bióloga capaz de alterar o clima é uma homenagem póstuma a “Os Vingadores”. Tadinha da Uma, que nunca esteve tão feinha num filme – olheiras, cabelo esquisito, pele bronzeada demais. Ela deveria assinar um contrato jurando que só vai trabalhar com o Tarantino daqui em diante.

Teve uma hora em que me cansei e comecei a pensar em outro filme que fala sobre perda de memória, “Amnésia”. Aquilo sim que é inteligente. Sei que os mesmos críticos que babam por “Pagamento” condenam “Amnésia”. Eles dizem que, se o filme não fosse montado de trás pra frente, não seria tão original assim. É, e daí? De repente o meio não é mais a mensagem? Vão catar coquinho! Mas, voltando a esse assunto sofrível que é “Pagamento”, ó Deus, parece que lá pelas tantas a civilização corre o risco de acabar, mas o que vemos é Ben, o Aflito, preocupando-se em salvar a própria pele. O final é o mais capitalista possível. O trio formado por Ben, Paul e Uma decide que mudar o mundo tudo bem, desde que eles sejam milionários e concentrem renda. O quê? Você não sabia que tinha final feliz? Olha, a essa altura, final feliz seria só se o Ben anunciasse sua aposentadoria precoce.

CRÍTICA: OS NORMAIS / Apagão de ideias

Lá estava eu muito entediada vendo “Os Normais – O Filme”, quando a luz do shopping caiu e a sessão acabou. Isso na mesma semana que Floripa ficou às escuras durante uns dois dias. Em homenagem, o maridão imediatamente perguntou: “Joinville tem ponte? A Síndrome do Apagão se alastrou por toda Santa Catarina?”. A energia não voltou, vimos só a primeira hora da hora e meia da comédia, e confesso que não ficamos com a mínima vontade de ver o resto. Tudo bem, é possível que tenham deixado a melhor parte pro final, e que perdemos os trinta minutos mais divertidos da história do cinema. Assim como é possível que eu perca vinte quilos graças a minha dieta à base de chocolate.

É verdade que eu nunca fui fã da série de TV, mas o maridão até que era. Acho que eu não gostava porque, dos poucos episódios que assisti, nunca vi nada que não fosse clichê. E esse humor burguês cansa depois de um tempo. Tá, sei que eu e praticamente todos os espectadores de cinema somos classe média, mas, falando sério: piadinha sobre tamanho de pênis ainda tem graça? No filme, além dessa gracinha, ainda há umas quatro tentativas de fazer rir com a largura dos absorventes internos. Desconfio que isso só produza cócegas naqueles que consideram esses assuntos tabus. É o risinho nervoso da platéia que diz: “Olha só, o Rui falou ‘pau’! Uau, a Vani falou um palavrão pro padre!”. Essas reações me lembram algumas peças de teatro em que o autor enche o texto de palavrões pra parecer transgressor e matar parte do público de rir. Em “Os Boçais – O Filme”, os atores pronunciam bem os palavrões pra mostrar como a versão cinematográfica é diferente da televisiva. Os atores enchem a boca pra enfatizar as palavras proibidas. Como eles são ousados!

Eu até achei graça de alguns chistes mais visuais, que é a especialidade do diretor José Alvarenga Jr., que já fez comédias com os Trapalhões. Por exemplo, a primeira piadinha sobre jogar arroz nos recém-casados foi fofinha, mas a terceira reprise da mesma piada me deu sono. A Vani (Fernanda Torres) batendo num segurança é legal. No entanto, há flagrantes explícitos da mão pesada do roteiro. Na disputa pelo buquê da noiva, pode ser divertido, pra quem nunca viu isso antes, que uma moça derrube outra. Pode até ser divertido mostrar a moça no chão, desmaiada. Mas mostrar uma poça de sangue saindo da cabeça da moça já meio que mata a piada, né? Tampouco é engraçado exibir o Rui (Luís Fernando Guimarães) dançando logo depois. Os figurantes olham pra ele com pena, e a platéia também. Cá entre nós, se eu já não gostava dos personagens antes, não vou gostar agora que descobri que a Vani não apenas votou no Collor, como fez campanha pra ele. Nessa a roteirista Fernanda Young e o marido pegaram pesado mesmo. Aliás, é hilário presenciar Rui e Vani furarem todas as filas? Até quando a gente lê que a escritora e queridinha da mídia Fernanda tem orgulho de seguir o padrão na vida real?

Claro, eu posso estar enganada. As duas senhoras do meu lado riram bastante. Mais do que isso – elas telegrafavam as piadas. Assim: a Vani declara que vai dar pro primeiro que aparecer. Corta pro Rui num carro, indo naquela direção. A senhora do meu lado fala pra outra: “Ah, ele vai ser o primeiro a aparecer!”. Ela deve ser vidente. E, pelo jeito, ela não é a única apreciadora de gracinhas previsíveis. O filme já fez quase um milhão de espectadores só na primeira semana. Quem sabe? Talvez eu e o maridão fomos os únicos anormais a não reclamar do blecaute.

CRÍTICA: O NOVATO / Vocação para salvar o mundo

Nossa lavagem cerebral continua a pleno vapor. Se você já se cansou de amar apenas o american way of life e quer agora aprender a se apaixonar pela moderna espionagem deles, vá ver “O Novato”. Eu fui, e hoje posso dizer que adoro a CIA. Não sou mais aquela adolescente revoltada de décadas atrás que foi fazer um curso de Ciência Política em Washington e que respondeu à pergunta que davam nos aviões (“você já pensou em matar o presidente americano?”) com um “hoje ainda não”. Naquela época, eu queria descobrir a diferença entre a CIA e uma organização terrorista. Agora não. Estou curada. Aleluia, irmãos!

“O Novato” é deveras instrutivo. Mostra um gênio dos computadores que, ao contrário dos nerds que a gente conhece, usa tatuagem e luta boxe. Este carinha, interpretado pelo Colin Farrell (“Minority Report”, “O Demolidor”), é recrutado pelo Al Pacino pra ser agente da CIA. O que o jovem quer mesmo saber é se o pai dele, desaparecido no Peru, tinha sido um espião. Ou seja, ele é um chato. A gente querendo que a história engrene e o rapaz pressionando o Al sobre seu pai, pra quem a gente não dá a mínima. No treinamento, o Al informa que a procura pra ser membro da CIA nunca esteve tão alta. E por quê? Não é pelo salário, míseros US$ 75 mil por ano. Não é pela fama, já que a CIA, infelizmente, só é conhecida pelos seus fracassos, não pelos seus inúmeros sucessos. Não é pra arranjar parceiros sexuais, pois agentes como ele e o Colin parecem não tomar banho há séculos. Bom, essa última parte foi dedução minha, o resto é realmente proferido pelo Al. Por que, então, todo mundo sonha em ser agente da CIA? E ele responde: porque a gente acredita no certo e no errado e sabe diferenciar o bem do mal. É uma questão de vocação, saca? Quase um sacerdócio. Nessa hora, eu interroguei o maridão pra ver se ele era da CIA. Ele disse: “Claro que sim, todo mundo é. Tá no sangue”. E eu: “Você ganha 75 mil dólares por ano? Cadê?”.

O treinamento se dá num lugar apelidado “A Fazenda”, onde nossos bravos recrutas suportam choques elétricos e discursos do Al – tudo por amor à pátria. Eu fiquei pensando que deve ser difícil pro Colin, que não troca de roupa nem faz a barba em todo o filme, tornar-se agente secreto com aquele cheiro, mas ninguém pareceu ligar. Ele deseja ser mais que um espião, alguém tão secreto que não existe nem pra organização e que eles chamam de OINC. Não, acho que errei a sigla, fiquei influenciada pelos porquinhos da fazenda, perdão. Deve ser NOC. O problema é que, pra quem é espião, eles não são lá muito discretos. Daí a gente vê o Al gritar pro Colin no meio da rua: “Você é o OINC, quer dizer, o NOC!”. Mas como o amor é cego e provavelmente sem olfato, uma espiã arrasta uma asinha pro Colin. A magrinha é interpretada por uma tal de Bridget Moynahan (se você não se lembra dela em “A Soma de Todos os Medos”, você não está sozinho). Ela e o Colin transam e começam a desconfiar um do outro dois minutos depois. Pra atenuar o mal-estar, o Colin finge que estava procurando no computador dela um site sobre o pai desaparecido. Imagina só, treze anos depois, logo após uma noitada caliente, ele vai buscar o papai. E a magrinha cai! Nessa hora eu entendi por que minha imagem favorita no filme é a aparição de uma placa escrito “Centro de Inteligência George Bush”. Como as palavras Bush e inteligência cabem na mesma placa? Ah, mas é o Bush pai. E ele era inteligente? Se fosse, tinha feito vasectomia antes de casar.

Opa, você acha que eu revelei demais de “O Velhaco”? Você não viu o trailer, né? O que assusta é que o diretor Roger Donaldson já fez thrillers políticos mais engajados, como “Sem Saída” e “13 Dias que Abalaram o Mundo”. Mas eram outras épocas. O tema deste aqui é que nada é o que parece. Por exemplo, eu também sou CIA. Eu chamar o Bin Laden de Osama é só fachada. Ai, ai. Depois o embaixador dos EUA vem na faculdade perguntar como vai o anti-americanismo no Brasil. Ué, só dá pra responder que vai bem, obrigado.

CRÍTICA: SOBRE MENINOS E LOBOS / Um policial com alma

Se você é como eu – tem mais de 15 anos (digamos, bem mais) e anda reclamando que a programação dos cinemas tá pra lá de infantil –, não deixe de ver “Sobre Meninos e Lobos”. Primeiro, porque poucos filmes na vida podem estar mais distantes de “Irmão Urso” do que este do Clint Eastwood, já cotadíssimo pro Oscar. É praticamente certo que “Lobos” vai concorrer a melhor filme, diretor, roteiro e ator. Esteja avisado pra quando entrar no meu bolão. Segundo, porque esta produção é envolvente e adulta (hoje em dia isso é elogio em matéria de cinema).

Então, ao filme. Um grupo de três meninos brinca em Boston, e um deles é raptado e estuprado. Os três, já adultos e não mais tão amigos assim, vivem seus inferninhos particulares. Tim Robbins, a ex-vítima, tem uma existência amargurada. Sean Penn é quase um marginal, mas mantém as aparências graças à loja que tem. Quando sua filha de 19 anos é assassinada, seu mundo desaba. E entra em cena o Kevin Bacon, que faz o policial que investigará o caso. Todas as evidências apontam pro personagem do Tim, mas eu, que sei tudo sobre psicopatas (e tudo que sei, sem exceção, aprendi com o cinema americano), não acho que uma bala no peito seja o modus operanti de um serial killer. Não há heróis em “Lobos”, o que faz com que a gente perceba estar frente a um filme policial diferente. E, apesar da brilhante (embora exagerada) atuação do Sean, que tá a cara do Robert De Niro, a produção não é melodramática. Ó, pra eu não chorar num filme, é porque ele é frio e distante. E isso é bom.

Lógico que “Lobos” não é uma obra-prima. Não é um “Imperdoáveis”. Pra começar, às vezes o Clint parece não confiar na nossa inteligência (e quem pode culpá-lo?). Os resuminhos atrapalham. Ademais, não gostei de dois dos três finais do filme. O da Laura Linney, que faz a mulher do Sean, posando de Lady Macbeth, meio que pertence à outra história. Claro que “Lobos” tá muito acima da média, mas considere a concorrência. Pra entender o entusiasmo da crítica com o filme, é preciso entender os críticos. Olha só, eles são homens, na sua maioria. Adoram o Clint Eastwood desde os tempos do spaghetti-western. Já idolatravam o Clint quando ele era apenas ator. Quando virou diretor, então, foi uma babação geral. Fico imaginando a reação de alguns críticos ao notar que o Clint compôs a trilha de “Lobos”: “Uau, ele também escreve música?!”. Ficamos assim: por mais que “Lobos” seja ótimo, ele seria tão festejado se não levasse a assinatura do Clint? Duvido...

CRÍTICA: NA COMPANHIA DO MEDO / Um espírito baixou na Halle Berry

Fui ver “Na Companhia do Medo”, um thriller paranormal muito do desonesto. Não porque busca sua inspiração em produtos melhores como “O Sexto Sentido”, mas porque abusa de truquinhos baratos pra nos assustar – e falha miseravelmente. Por exemplo, tem uma hora em que a protagonista segura a alça de um alçapão e a música de suspense vai aumentando e aumentando, e nada. Mas é mais apropriado eu contar um tiquinho da história pra você não ficar boiando. É assim: a bela Halle Berry é uma psicóloga numa prisão psiquiátrica. Ela é casada com o diretor da prisão, que logo nos primeiros minutos a manda jogar o conteúdo de um copo num espelho, e ela obedece sem pestanejar. Sei que tô sendo repetitiva, mas vale lembrar: esses dois são psicólogos. A Halle vai pra casa numa noite chuvosa e, no caminho, quase atropela uma menina cabeluda igualzinha à de “O Chamado”, só que loira. Quando vai ajudá-la, ela e a menina pegam fogo (não no sentido dos filmes pornôs). Nessa hora, ouvi um espectador falar pro outro: “Hã?!”. Também fiquei perplexa. Mas tudo que é ruim tende a piorar, e a Halle acorda no mesmo instituto onde trabalha, só que agora como paciente acusada de matar brutalmente o marido. A tal menina é uma fantasma que vai continuar aparecendo só pra ela, ou seja, a Halle vê dead people. Este deve ser o problema central da trama: pra que diachos serve a fantasminha? Por que ela bate tanto na Halle? Só porque a Halle deveria estar fazendo filmes mais nobres após levar o Oscar, ou há outros motivos? Por que a Pluft só surge quatro anos depois de morta? Por que ela não mata suas vítimas ela própria, ao invés de possuir (de novo, esqueça o pornô) a Halle? Por que eu tô cobrando coerência de um terrorzinho tão fajuto?

Mais ações inspiradas acontecem: um outro psicólogo, esse interpretado por um Robert Downey Jr. totalmente desperdiçado, faz uma pesquisa na internet e desvenda todo um mistério. O maridão comentou comigo, revoltado: “E eu que não consigo nem encontrar o resultado de um torneio de xadrez!”. Ah, mais legal ainda: o advogado da Halle diz que não vai alegar insanidade temporária da cliente porque o júri não iria acreditar. Hum, essa cliente jura estar possuída e leva surras homéricas de espíritos, mas não, o júri não acreditaria. Bom, finalmente “Medo” acabou e eu saí do cinema ao mesmo tempo em que saía o público de um outro filme em que o personagem principal também apanha horrores. Era “A Paixão de Cristo”, que segue lotando as salas.

CLÁSSICOS: CARRIE / Como morrem os clássicos

Mães que se sacrificam pelas filhas.

Como meus aluninhos adolescentes adoram ver seus semelhantes estraçalhados da forma mais sangrenta possível, e como eles insistiram que eu passasse um filme inteiro numa aula, decidi exibir um clássico, "Carrie, A Estranha". Ainda não sei se foi uma escolha acertada. Fora as piadinhas de praxe ao saberem que o thriller era de 1976 ("Já tinha cinema nessa época?"; "É em preto e branco?"), eles gritavam "Palha!" pra qualquer efeito especial, apelidado por eles de defeito especial. E, no final, elegeram "Carrie" como um dos piores filmes que já viram, embora eu tenha a nítida impressão que eles só disseram isso pra me provocar.

Bom, é meio indiscutível que "Carrie" seja um clássico. Foi ele que colocou Brian De Palma como um dos diretores mais influentes da década de 70. Se não fosse importante, não teria gerado uma "seqüência" 25 anos mais tarde. Além disso, foi o primeiro romance de Stephen King adaptado para as telas. King escreveu a história em 74, quando morava num trailer com sua família e trabalhava numa tinturaria. O livro vendia bem, mas as edições continuavam a chegar sem o nome do autor na capa. Nada indicava que ele se tornaria um dos autores mais populares de todos os tempos, com dezenas de obras transformadas em filmes – meus adolescentes nunca ouviram falar nele, mas não quero falar nisso. A verdade é que "Carrie" nem é minha adaptação favorita de King (prefiro "O Iluminado" e "Um Sonho de Liberdade"), nem o melhor De Palma ("Um Tiro na Noite" e "Os Intocáveis"). Mas é um senhor filme.

Vou me deter mais um pouquinho no De Palma, que é sempre um personagem fascinante. Até 76, ele tinha feito seis filmes, incluindo aí duas comédias que provavam sem sombra de dúvida que o suspense era mais sua praia. Embora "Irmãs Diabólicas" (72) seja um thriller muito divertido, De Palma era visto como um pastiche de Hitchcock e não era levado a sério. Até o compositor que ele usava era o Bernard Herrmann, o mesmo de Hitch. Mas De Palma recebeu a quantia bem baixa de US$ 1.8 mi para rodar "Carrie", chamou Bernard, que morreu antes de completar a trilha, e o substituiu por um compositor que também usasse acordes de violino à la "Psicose". Pra economizar, o diretor fez os testes para a seleção de elenco junto com George Lucas, que estava escolhendo gente pra "Guerra nas Estrelas". Quem De Palma selecionou? Desconhecidos como John Travolta, Amy Irving (que logo depois se tornaria a Sra. Spielberg) e Nancy Allen, com quem o próprio De Palma se casaria. Ele ainda resgatou Piper Laurie de um exílio auto-imposto pra fazer a mãe de Carrie. Pro papel-título, escolheu Sissy Spacek, que era mulher do seu produtor de design e já havia estado no instigante "Terra de Ninguém". Surpresa! Sissy e Piper foram indicadas ao Oscar.

O filme já começa quebrando um tabu. Em câmera lenta, com fotografia difusa, vemos muitas moças num vestiário feminino, várias delas nuas. Neste ponto, meus adolescentes perguntaram: "Você vai passar um filme pornô pra gente?". Nancy Allen aparece em nu frontal em todo seu esplendor, enquanto os créditos rolam. Bem nessa parte, surge o nome do editor do filme, o que levou inúmeros espectadores a indagar: "Por que seu nome não aparece nos créditos?". Pobre editor. Imagina se alguém vai prestar atenção nele tendo a Nancy nuinha à disposição. A câmera continua rondando o vestiário até chegar em Carrie tomando banho. Sangue escorre pelas suas pernas. Ela está tendo sua primeira menstruação, mas, por falta de informação, pensa que está morrendo. Suas colegas dão sua contribuição rindo dela e cobrindo-a com absorventes.

É disso que o filme trata, de rito de passagem, de sobreviver à escola. É um pouco também um terror sobre menstruação, um tema que vem a calhar pra um misógino confesso como De Palma. E ele conhece bem o que faz. Além da tela dividida, uma de suas marcas registradas, ele coloca Carrie e seu par girando sem parar numa seqüência de três minutos de tirar o fôlego, o que fez um de meus adolescentes reclamar: "Estou ficando tonto!". Ahn, talvez fosse essa a intenção? A cena final é de arrepiar. Quando eu era jovem, rebobinava a fita pra ver o fim de novo, e gritava de susto todas as vezes. Mas os tempos mudaram, e o que assustou mesmo minhas teens foi a cena em que Carrie, coberta de sangue, toma banho de banheira. Minhas alunas bradaram, horrorizadas: "Ahh! Ela lava o cabelo com sabão?!". Pois é, já não se faz mais público como antigamente.

CRÍTICA: MESTRE DOS MARES / O mastro do mar morto

Vendo “Mestre dos Mares”, cheguei à conclusão que, se as mulheres liderassem o planeta, não haveria guerras. Sério, guerra é uma coisa muito chata, tudo na base de símbolos fálicos, e ainda por cima mancha a roupa. E guerra no oceano, então, parece pior ainda. Esse épico aquático, que foi incrivelmente indicado a dez Oscars (o que diz bastante sobre a qualidade dos outros filmes do ano) e que tirou o de Fotografia das mãos de “Cidade de Deus”, é bem tedioso. Eu dormi em vários momentos. Ele fala de um capitão britânico, o Russell Crowe, lutando contra um navio da frota do Napoleão em plena costa brasileira. Aliás, não sei se você notou, mas o subtítulo do filme – “O Lado Mais Distante do Mundo” – deve ser uma referência a nós aqui embaixo do Equador. Se bem que o ritmo da aventura às vezes faz pensar que ela se passa no Mar Morto mesmo.

Mas é aquilo de sempre: a crítica americana adorou o filme, provavelmente por ser do Peter Weir, de quem todo mundo gosta por causa de “A Testemunha”, “Sociedade dos Poetas Mortos” e “Truman Show”, isso só pra ficar na parte hollywoodiana da obra do australiano. Houve apenas um crítico que desdenhou de “Mestre” dizendo que a única coisa que faltava era a baleia branca, e mesmo isso foi proporcionado pela ampla cintura do Russell. Eu não achei “Mestre” tenebroso, mas, cá entre nós, qual o interesse em ver um navio atirando no outro? Será que esses homens de 1805 não tinham nada melhor pra fazer não? Pô, vão jogar videogame. As condições sanitárias e a comida dentro do barcão pareciam ser horríveis, e qual a vantagem de visitar o nordeste se nem se podia desfrutar da paisagem? Há uma leve indicação de que o turismo sexual já existia naquela época, a julgar pela única mulher do filme. Ela tem zero linha de diálogo, mas o Russell olha pra ela de jeito insinuante, o que deve ser a glória pra uma nativa cá do lado mais distante do mundo. Na verdade, o Russell tem mais afinidades com o médico à bordo, interpretado pelo Paul Bettany, o rapaz mais manipulador de “Dogville”. Há uma hora em que o doutor opera a si próprio usando um espelhinho, mas é preciso mais do que isso pra que eu admire alguém. O médico prefere a natureza à guerra, o que é compreensível, e ele pára nas Ilhas Galápagos pra coletar bichinhos. O filme nos faz crer que antes do Darwin já existia o Paul Bettany. Toda essa seqüência naturalista é bonita, mas não tem nada a ver com “Mestre”. Além do mais, tem um menininho que vive correndo atrás do médico com um besouro. Só tava esperando ele chegar com uma barata pro doutor jogá-lo aos tubarões. Mas não tive esse prazer. E quer saber? Não tive prazer nenhum em “Mestre”. O Russell tá inexpressivo, mais pra mastro que pra mestre dos mares; os personagens não são aprofundados, então eu não conseguia distinguir um do outro e não ligava pro que acontecia com eles. E tem o problema da linguagem náutica. Ó, se eu tiver que passar o resto da vida sem ouvir expressões como “Velas a bombordo!”, juro que não reclamo. “Mestre” definitivamente não é um filme pra mulheres sofisticadas e pacíficas como eu. Pior que guerra de barquinho, só de submarino mesmo. Aí não resta nem a paisagem pra ser destruída pelos másculos e potentes tiros de canhão.

CRÍTICA: MATRIX RELOADED / A humanidade por um fio, de novo

Antes de falar sobre “Matrix Reloaded”, tenho de falar sobre o “Matrix” de 99. Adorei o original, mas não de cara. Na primeira vez que o vi, cometi a heresia de considerar “O Cubo” mais interessante. Mas aí vi de novo, e de novo, e cada vez que eu via, mais eu gostava. Hoje amo “Matrix” e o colocaria na lista dos dez melhores filmes da década de 90. O que mais me encanta é quando o agente Smith diz que nós, humanos, somos o vírus do planeta. Opa! Vamos começar do começo. Supondo que você passou os últimos quatro anos numa caverna do Tibet e não saiba do que estou falando: o “Matrix” original mostra que nada disso que vivemos é realidade. É uma simulação para que a gente não perceba que, no fundo, somos escravos de máquinas que sugam nossa energia. O filme é complicado e tá cheio de mensagens filosóficas que permitem um enorme número de interpretações, dependendo do seu credo (me preocupa que o fundamentalismo cristão tenha adotado “Matrix” como seu filme de cabeceira), mas o espectador médio pode descartar essas mensagens e babar com a ação. Bom, “Matrix 2”, como quase todas as continuações, não chega aos pés do primeirão – embora seja muito boa. Não recomendo que o pessoal vá ver a seqüência sem ver o original, ou não vai entender patavina. Ah, e todo mundo precisa ser avisado que “Matrix Reloaded” não termina agora, só em novembro, com a terceira (e última?) empreitada da série.

Então, gostei bastante de “Matrix 2”. Também tem idéias provocantes como clamar que a escolha é uma ilusão criada pelos que têm poder para aqueles que não têm. E há uma excelente seqüência de perseguição numa via-expressa. O melhor momento ocorre quando a Carrie-Anne Moss, que faz a Trinity, o par romântico do Neo, pilota uma moto na contramão, mas espero que os motoboys não se inspirem e façam isso no Brasil, pelo menos não sem capacete. O problema é que, em seguida, vem outra cena de ação que pára a ação. O Morfeu (Laurence Fishburne) dá pra lutar em cima de um caminhão. Deviam ter continuado com a Trinity.

O grande negócio do primeiro é que os irmãos Wachowski (e tem quem ache meu nome difícil), roteiristas e diretores do filme, conseguiram mesclar explicações e lutas de kung-fu sem jamais perder o ritmo. Nesta segunda investida, isso não acontece. Parece que eles cronometraram as cenas pra dar equilibro, mas, infelizmente, há muita coisa desnecessária. Por exemplo, um videoclip logo no início, com a população de Zion (a última cidade humana) fingindo estar numa rave enquanto Neo e Trinity se amam, cheira à pura preguiça. E pode ser uma bela proeza de efeitos especiais gerados por computador colocar o Neo pra combater uns 111 (não contei) agentes Smith, mas toda aquela encenação lembra mais joguinho de videogame. Tanto que quando os agentes aparecem novamente é inevitável a gente pensar “Ih, lá vem aqueles malas outra vez!”.

É incrível como o Keanu Reeves é capaz de distribuir socos e pontapés sem desarrumar os óculos escuros. Não estou criticando o Keanu, que, apesar de não ser um ótimo ator, é perfeito pro papel. O Keanu, inclusive, está a anos-luz da sua aparição em “Drácula”, esta sim considerada uma das piores interpretações por um ator profissional na história do cinema, tadinho. Tenho a maior simpatia pelo Keanu, sério. Mas os criadores do filme certamente estão a par da temática gay do primeiro “Matrix”, que rendeu teses acadêmicas hilárias. Não deve ser à toa que Keanu – que na vida real, dizem, vive com um homem mais velho – desta vez seja cantado por dois coroas (o conselheiro e o arquiteto). Depois, o agente Smith critica o Neo por usar todos os músculos... menos um. Os irmãos Wachowski estão obviamente duvidando da masculinidade do Keanu, ou no mínimo dando mais pano pra manga. E disfarçar fazendo com que ele seja forçado a beijar a Monica Bellucci não ajuda. Aliás, como a Monica (de “Malena”) é linda. Como a Carrie é feinha em comparação. Falei pro maridão que, se ele tivesse que beijar a Monica na minha frente para salvar a humanidade, a gente poderia concluir que a humanidade já durou demais mesmo. Mais tarde, perguntei pra ele quem ele preferia salvar, eu ou a humanidade? Ele disse que a humanidade, já que isso supostamente me englobaria. Tive de reformular a questão: eu ou toda a humanidade menos eu? Ele quis saber se a humanidade incluía os cachorrinhos.

P.S. 1: O que eu queria mesmo é que todas as pessoas que falassem ao celular no cinema fossem predestinadas. Ou seja, no momento em que elas atendessem o telefone, elas ficariam verdes e desapareceriam sem deixar vestígio.

E mais um P.S. pra acabar: tem um trailer de “Matrix 3” após os créditos, mas não sei se compensa agüentar cinco minutos de barulho-que-alguns-chamam-de-música pra vê-lo.

CRÍTICA: MATRIX 3 REVOLUTIONS / Revolução? Que revolução?

Chegou “Matrix Revolutions”, vulgarmente chamado de “Matrix 3”, que segue a regra de 95% das seqüências. Assim: o filme original é ótimo, o segundo é meia boca, e o terceiro é uma anomalia, feito com o único propósito de gerar lucros. Bom, se “Matrix 3” fosse uma aventura independente, e não a parte final (espero) de uma trilogia, ele não seria tão ruim. Mas como desfecho do que hoje já é tido como um clássico da ficção científica, ele é decepcionante. Triste. Fajuto. Você adorou a filosofia de botequim do primeiro? Eu também. Aqui não tem nada disso. A frase mais cabeça desta terceira investida é “todo começo tem um fim”, que é bem clichê. E aqueles efeitos especiais revolucionários do primeiro? Aqui eles estão meio velhinhos. Ahá! No mínimo, o filme irá responder questões deixadas em aberto por “Matrix Reloaded”, certo?. Pode esquecer. Quando um personagem, mais pro fim, lança um “Isso não faz sentido!”, minha vontade foi me levantar da cadeira e gritar “Apoiado!”.

Desta vez é encenada a batalha de Zion. Ela é longa, militarista, de dar tédio mesmo. Deveria ser uma luta de pessoas contra máquinas, mas os humanos usam enormes geringonças. Na hora, eu pensei em “Robocop”; o maridão em “Tropas Estelares”. Mais tarde ele revelou que tava torcendo pelas máquinas. Esta guerra interminável ocupa boa parte do filme, e o padrão é simples: montes de efeitos gerados por computador, e de repente insertam um close de algum ator desconhecido pra nos lembrar que isto não é um desenho animado. Pô, se eu quisesse ver rabiscos de última geração, brincaria com joguinho de videogame. Já a revolta do maridão foi mais singela: se é só uma nave chegar e fazer GOLOB pra destruir todas as sentinelas que mais parecem polvos mecânicos, por que não fazem isso antes? Não respondam, pelo amor de Deus!

Outro erro dos irmãos Wachowski foi confiar demais na nossa memória. Sem chance de eu me lembrar da trama de “Matrix 2”, que vi em maio. Ou isso prova que estou ficando caduca, ou que o “Reloaded” não deixou exatamente uma impressão indelével. Os quilos de personagens olvidáveis do segundo episódio voltam aqui com força total, a ponto de eu jurar que vi o Dr. Spock. O quê, você quer Neo, Morpheus e Trinity, os heróis do original? Aqui eles são quase coadjuvantes. Até o agente Smith tem tempo limitado. Se bem que, quando surge, ele mais parece uma caricatura, com direito à risada diabólica e tudo. Após uma luta de meia hora entre Neo e o agente, luta esta vencida por Neo (acho que não estou contando um grande segredo), tinha certeza que Neo diria: “Ufa! Agora só faltam mais 245.000 agentes Smith. Próximo!”.

Gostei da estação de trem fantasma no começo, pois ecoou “A Viagem de Chihiro”, um anime assumido. Mas não entendi uma penca de coisas. Por exemplo, por que termina a guerra entre máquinas e humanos, se o conflito inicial não se resolve? As máquinas não vão mais se alimentar da nossa energia? Aliás, na cena totalmente anticlimática em que é anunciado o fim da guerra, pensei que as pessoas de Zion iam se virar umas pras outras e perguntar, tais como os americanos: “Ish, e agora, o que vamos fazer da vida?”. Ah, e se a gente reclamou da aparição do Rodrigo Santoro em “As Panteras Detonando”, o que dizer da Monica Bellucci neste filme? Ela tem uma só fala, mas dois rapagões atrás de mim não prestaram atenção. Tudo que eles diziam no único minuto da Monica era “Que peitões!”. Foi pra isso que a Monica saiu da Itália, tadinha?

Agora que a trilogia chega ao fim, vamos ser sinceros: o primeiro “Matrix” pegou todo mundo de sopetão ao virar cult da noite pro dia. Os dois outros “Matrix”, safra 2003, servem pra abastecer os fãs de carteirinha do original, desses que colecionam óculos escuros, participam de sites interativos, e sabem até o nome da mãe do Neo. Como não me incluo na seita, o melhor a fazer é rever com carinho o primeiro e fingir que a trilogia acabou ali em 1999. Afinal, o “Matrix” original já valia por uns três filmaços, né?

CRÍTICA: MAR ABERTO / Nós jogamos com os tubarões

Fiquei com vontade de ver “Mar Aberto” desde que vi o trailer, que, ao contrário do trailer de “Alexandre” e de “Rei Arthur”, que vi 352 vezes cada um, o do “Marzão” só passou uma. A história é simplérrima e isso explica por que os críticos não conseguem escrever mais que dois parágrafos sobre o filme: um casal vai mergulhar nas férias, é esquecido pelo barco em pleno mar, e fica lá no meio daquela imensidão azul, esperando Godot ou qualquer outra coisa que não vem. A aventura é curtinha, menos de uma hora e meia, e o que aparece por boa parte do tempo são as duas cabecinhas boiando. E muitos tubarões.

Como o filminho é americano, mas independente – custou a bagatela de130 mil dólares num país em que uma produção média não sai por menos de 30 milhões –, os tubarões são de verdade, não umas geringonças construídas de latão ou uns rabiscos gerados em computador. O mar é de verdade, não um tanque planejado. Os atores são ilustres desconhecidos e, assim, o diretor sente-se à vontade pra fazer o que quiser com eles (incluindo uma breve e gratuita cena de nudez com a Blanchard Ryan). Bom, no fundo não acontece muita coisa no filme, mas parece tudo muito real. E é uma tensão apavorante. Poucas vezes vi o maridão tão assustado no cinema. Minha mão virou pastel.

Este é um caso em que os críticos até que gostam do filme, mas o público, não. Na sessão que eu fui, um rapaz gritou pro outro no fim, “Não disse que a gente devia ter ido ver ‘Rei Arthur’?”. Li coisas bem injustas acerca de “Mar”. Que a única preocupação do casal é urinar ou não na roupa de mergulho. Que eles são insuportáveis. Que a gente não se identifica com eles. Que a gente torce pelos tubarões. Que o maior prazer da obra é ver yuppies virarem comida de peixe. Olha, não achei nada disso. Não tenho certeza se me identifiquei com a situação, baseada em fatos reais, porque mergulhar, eu? Não sei nem afundar. Mas achei a crise conjugal do casal bem crível. Chega uma hora na tradicional troca de um culpar o outro em que a moça fala “Eu queria esquiar!”. Com todo o respeito ao respeitável público, acho que o pessoal tá mal-acostumado. Depois da lavagem cerebral hollywoodiana, a gente espera sangue, orçamentos gigantescos, efeitos especiais. Esta certamente não é uma história de incrível superação humana, como a fábrica de sonhos faria. E talvez por isso seja tão eficaz.

Se “Mar” traz alguma mensagem, é: quando você estiver num barco, socialize com a tripulação. E talvez uma mensagem subliminar: mergulhar é um belo programa de índio. E a última: caiu na rede é peixe. Legal mesmo foi sair da sessão e notar que o shopping tinha montado uma exposição de tubarões vivos. Se fossem mortos fariam mais sucesso, depois desse filme. Travei o seguinte diálogo com o maridão na saída: Eu: “Pensei que xixi atraísse tubarão”. Ele: “Qualquer coisa atrai tubarão”. Eu: “Você tá de marcação com os tubarões”. Ele: “Quero que eles morram”. Ele realmente ficou revoltado com os pobres peixões. Eu não. Eu gosto deles. Tanto que, em sua homenagem, vou contar a única piadinha que sei. É assim: você gosta de fofoca? E de tutubarão?

CRÍTICA: LIGA EXTRAORDINÁRIA / Trash com verniz literário

Ao sair da sessão de “Liga Extraordinária”, o maridão me confidenciou: “Esta é a pior produção que vejo em muito tempo”, ao que eu retruquei: “Você diz isso pra todas”. O nível cinematográfico está tão rasante que dá pra eleger um novo pior a cada semana. Mas convenhamos que “Liga”, que de extraordinária não tem nada, seja uma mistura de “Os Vingadores” (aquele com o Sean Connery posando de Ursinho Carinhoso) e “As Loucas Aventuras de James West” – não por acaso, duas bombas indescritíveis. O filmeco é tão chato que eu dormi em várias cenas, mas tão barulhento e cheio de explosões que nem pra embalar um soninho profundo ele presta. É o tipo de troço que não dá pra entender por que foi feito.

Mas vamos à história, se é que posso chamá-la assim. A aventura se passa na Europa em 1899, ou seja, um pouquinho depois do nascimento do maridão. Um vilão quer promover uma guerra mundial. Pra combatê-lo, o Império Britânico (Deus Salve a Rainha etc etc, ó tédio) convoca um grupo de heróis. A única premissa minimamente interessante é que esses heróis são crias da literatura. Logo, tem o Sean Connery fazendo o Allan Quatermain (personagem de “As Minas do Rei Salomão”); uma vampira tirada de “Drácula”; o Homem Invisível de H. G. Wells; o Capitão Nemo de Julio Verne; o médico e o monstro de Robert Louis Stevenson; e – pasme! – o Dorian Gray de Oscar Wilde, entre outras figuras que o pré-adolescente atual nunca viu mais gordas. Vamos ser sinceros: quem é mais famoso hoje, o peixinho de “Procurando Nemo” ou o comandante do Nautilus? Qualquer alma que já tenha ouvido falar de Dorian Gray sabe desde a primeira cena que o sujeito não tem nada de heróico. Um otimista pode até argumentar que é melhor um “Oscar Wilde for dummies” (e põe dummies nisso!) do que nenhum Oscar Wilde, mas será mesmo? É possível que esta joça atraia gente pra leitura dos clássicos literários? Tomara que sim, tomara que da próxima vez que o teen ouça o nome Tom Sawyer, ele não faça uma careta de nojo ao lembrar-se de “Liga”.

“Não Dá Liga” é uma adaptação de uma história em quadrinhos, digo, mais respeito, uma graphic novel de Alan Moore e Kevin O’Neill. Um amigo me emprestou as revistinhas e eu notei, feliz, que elas foram publicadas no Brasil pelo meu amigo da Pandora Books. Mas os quadrinhos também não são grande coisa, lamento. Certo, os personagens são mais estruturados, com mais nuances entre o bem e o mal, e podemos ver um Homem Invisível estuprador de meninas e um Quatermain viciado em ópio, mas ainda é pouco pra que seja um graphic novel de respeito. Que os quadrinhos sejam muito melhores que o filme não quer dizer nada, neste caso. Na aventura cinematográfica o Nemo parece o Osama Bin Laden de barba tingida, e o personagem é tão sem atrativos que me lembrou aquele garoto que só é aceito no time de futebol porque é dono do Nautilus, quero dizer, da bola. O Homem Invisível está incrivelmente mal-feito – dá pra ver que é um mau ator com a cara pintada de branco. Mas nada supera em ruindade o Monstro, vulgo Mr. Hyde, que faz com que aquele defeito especial chamado Hulk mereça o Oscar (não o Wilde, o outro). E o que dizer do Sean? Ele se mantém charmoso aos 73 anos, é verdade. Mas o maridão não entendeu a aparição de um tigre no meio do filme. Eu expliquei: “É pra mostrar que o velho tigre sabe quando chegou sua hora”. E ele: “Não sabe não! Ele continua fazendo essas melecas! Ele até produziu esta!”.

Juro que pensei que, entre os rachas de automóvel (você pensou que os carros eram movidos a cavalo em 1899, né? Errou feio! Já tinha até batmóvel na época) e as explosões em Veneza (por que esperar que a cidade afunde? Vamos destruí-la já!), os críticos iam se render ao verniz literário do filme. A Pauline Kael não disse uma vez que críticos de cinema costumam adorar adaptações literárias porque é a chance de provar que já leram um livro na vida? Mas, justiça seja feita aos críticos americanos, o Metacritic deu nota 28 (em 100) à “Liga”. E sabe aquela discrepância que acontece entre o gosto crítico e o do público? Bom, os leitores do Metacritic foram mais bonzinhos com o filme. Deram 29. Isso coloca “Liga” num patamar muito, muito baixo. Talvez o maridão tenha razão. Talvez “Desliga” seja mesmo o pior filme dos últimos, o quê, dois meses?