sábado, 31 de dezembro de 2011

2011, UM ANO DE LUTA VALENTE E REPRESSÃO BRUTAL

2011: uma longa jornada, mas que passou voando (na foto, carro pilotado por brasileiros na Argentina-Chile Dakar, em janeiro).

Pra quem tem inveja de não ter vivido 1968, talvez 2011 não tenha deixado muito a desejar. Muitos protestos e revoluções no mundo todo.Eu participei com orgulho da Marcha das Vadias em Fortaleza. Como muita gente sabe, a origem das marchas foi no Canadá, após um policial numa palestra universitária dizer que as mulheres devem parar de se vestirem como "sluts" (vadias) pra não serem estupradas. A primeira Marcha das Vadias no Brasil foi em SP (foto acima).Mas a maior mesmo foi em Brasília, em junho. Mais de mil moças (e moços) tomaram as ruas.
Em agosto, e com objetivos totalmente diferentes, a Marcha das Margaridas juntou em Brasília 70 mil trabalhadoras rurais.2011 contou com pelo menos dois casos tenebrosos de repressão a mulheres (embora não uma repressão institucional). No Brasil, um ex-estudante entrou na escola onde estudava, em Realengo, e abriu fogo, matando dez meninas e dois meninos (um policial conseguiu pará-lo antes que ele matasse mais pessoas). Incrivelmente, a mídia continua não se referindo ao ataque como um crime de ódio (contra um gênero). Na foto, vemos a reação da mãe de uma menina de 12 anos morta no ataque.Em Oslo, Noruega, outro misógino matou 93 pessoas. No seu longo manifesto se vê muito ódio, principalmente contra as mulheres. Muitos membros de grupos masculinistas, tanto aqui quanto em outros países, justificaram os ataques!Com a incontestável crise (colapso?) do capitalismo, dezenas de manifestações do tipo Occupy Wall Street tomaram os EUA, gritando "Somos os 99%!". Uma foto chocante parodiada à exaustão foi a deste policial que lança spray de pimenta num manifestante "rendido" na Universidade da Califórnia.Esta, menos conhecida, mostra a mesma brutalidade: um policial joga spray de pimenta no rosto de uma moça, em Portland.No Chile, os estudantes não arredaram pé das ruas para combater um dos sistemas educacionais mais privatizados do mundo. Na foto, um policial desfere um soco contra um menino.Na USP, em SP, estudantes invadiram a reitoria. Um enorme aparato policial foi armado para reprimi-los. A foto acima é uma pequena amostra.2011 foi o ano da Primavera Árabe. Vários países se revoltaram contra ditaduras históricas. A foto mostra uma manifestante em Cairo comemorando o anúncio da saída de Mubarak, após trinta anos de ditadura apoiada pelos EUA.
Camareiras de hotel em NY protestam na entrada da corte contra o ex-presidente do FMI Dominique Strauss-Kahn. Ele foi inocentado num julgamento que primou pelo machismo, mas pelo menos não tem mais uma carreira política.Australiano beija sua namorada canadense depois que ela é derrubada por policiais num protesto em Vancouver. O protesto de junho não teve motivação política: foi uma revolta por um time de hockey que perdeu o campeonato. Mas a foto é linda, não? Tão amor nos tempos de cólera!
Que 2012 seja um ano mais cheio de revoltas contra um sistema injusto. Isto foi só o começo. Ano que vem tem mais.

Veja mais fotos marcantes de 2011: Getty, Wall Street Journal, Courier Mail, Buzzfeed.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

GUEST POST: OS PIANOS QUE A GENTE CARREGA

Uma adolescente cheia de vida, a Miranda, me mandou um email que merece ser publicado, por causa da fluidez, sinceridade e humor. Ei-lo.

Depois de ler dois posts muito bons no teu blog, um piano saiu de cima dos meus ombros. Bom, na verdade, dois pianos, porque eu (como muitas outras, acredito) sempre tive nóia com os meus seios e com a minha vagina.

Quando meus seios apareceram foi uma droga. Eu sempre fui não só gorda, mas também grande, nada a ver com as mulheres mignon da família. Sempre chamei muita atenção só de estar presente, como um grande elefante branco no meio da sala. Aí eis que com uns doze anos começam a crescer duas coisas no meu peito, como se eu já não ocupasse espaço suficiente.

Houve uma fase em que eu não era nem reta como uma criança nem peituda como uma mulher, e eu lembro de achar muito feio aquelas duas coisas indefinidas apontando pra frente. Sei que algumas pré-adolescentes querem ter seios logo, mas comigo foi o contrário. Eu ainda era muito nova, muito cheia de energia, não estava nada a fim de ter que ficar me cuidando na frente dos meus amigOs, não queria deixar a infância pra trás de jeito nenhum. Adiei o uso do primeiro sutiã até o limite, tanto que uma amiga veio falar comigo pra avisar que estava visível demais e que se eu não usasse sutiã ia acabar tendo problema com os meninos. Bom, aí não dava mais pra segurar. Adeus, vida leve e despreocupada. Que comecem as frescuras.

Os sutiãs que minha mãe comprou pra mim eram simplesinhos, de lycra, específicos pra essa fase. Não duraram muito. Seios são revestidos de gordura, e isso nunca me faltou. Logo eu tinha dois seios muito bem desenvolvidos, obrigada. Passei a usar sutiãs como os da minha mãe, e quanto mais o tempo passava mais eu me convencia de que ser mulher era uma droga -– caramba, como sutiã irrita! Pinica, aperta, sai do lugar, não segura como deveria, aparece debaixo da blusa, faz você ter que trocar toda a roupa, etc, etc, etc.

Um belo dia minha mãe entra no quarto enquanto estou me trocando. Ela bate o olho em mim e de repente parece ter uma visão apocalíptica: “Minha filha”, ela diz, me examinando como um perito, “Seus seios estão caindo!”.

O motivo pelo qual meus seios eram caídos era bem óbvio: gravidade. Grandes daquele jeito, só não iam cair se eu segurasse com as mãos o dia inteiro. O engraçado é que eu nem lembro se eles algum dia foram empinados, acho que provavelmente nunca foram. Não sei, nunca perdi muito tempo na frente do espelho. Seios são seios, sabe, toda mulher tem, nenhum é igual ao outro, fim da história. Não era como se eles ditassem qualquer coisa na minha vida prática...

Dei de ombros. Mas não sei, acho que não era a reação que ela queria. Eu devia ter sentado na cama e desabado a chorar, quem sabe? O negócio é que ela tinha se dado conta da Enorme Tragédia que se abatia sobre mim, e nunca mais ela olhou pra mim sem aquela carinha de decepção -- tipo a que se faz quando o bolo que você assou deu errado.

E foi isso, e não o ângulo dos meus seios, que teve impacto na minha autoestima. Os peitos tinham sido problema desde o primeiro segundo, é verdade, eles atrapalharam minha vida. Me fizeram ter que tomar cuidados que antes eu não tinha, trouxeram olhares alheios que eu odiava, mas eu lidava com eles. A minha postura piorou bastante quando entrei na adolescência por causa deles -– afinal, seios pesam, a maioria das mulheres com peitos grandes tem problemas na coluna. Além disso, é comum as meninas jogarem os ombros pra frente pra disfarçá-los, já que eles chamam muita atenção e isso nem sempre é desejado. Comigo não foi diferente.

Lembro de ter uma colega mais velha; ela era alta, magra, e tinha mais peito que as outras meninas. A postura dela era impecável, e ela era sem dúvida bonita, mas engana-se quem acha que ela fazia sucesso –- pelo contrário, tanto meninas quanto meninos sempre fizeram piadas e fofocas maldosas. A moral da história é que não importa o tipo físico, quem quer encher a sua paciência vai achar alguma coisa, qualquer coisa, pra tornar a sua vida um inferno.

Saber disso tudo me ajudava, mas depois da observação da minha mãe, pela primeira vez eu achei que meus seios eram, além de problemáticos, feios. Nunca mais foi a mesma coisa. Só agora eu vejo que não é bem assim. Talvez eu finalmente consiga voltar a andar com a coluna reta...

Com a vagina foi um pouco mais traumático, porque, bem, é a vagina. Ninguém sai por aí falando dela. Eu ainda era novinha quando me dei conta de que tinha alguma coisa errada com a minha. Uma coisa sobrando. Uma coisa que não estava na figura do livro de biologia.

A primeira reação foi de pânico. Eu devia ter uns treze anos e me dei conta de que tinha alguma coisa errada... . Lá!!! Não era uma espinha no rosto, um dente torto, um certo grau de miopia; não, era um problema... láááá. Defeitos são ruins, defeitos na adolescência são muito ruins, imagine um defeito descoberto na adolescência... lá! De todos os lugares, justo lá! Por que comigo? POR QUE EU?!

Peguei um espelho. É, não se parecia em nada com o que eu achava que devia ser. Era feio. Na minha cabeça, uma completa aberração. Eu não sabia o que fazer, pra quem correr. Não dá pra falar por todas as mulheres, mas de onde eu venho, não se fala... disso. Dessas coisas. Coisas de mulher, eu quero dizer. Problemas de mulher que poderiam acontecer com qualquer uma. Não, não se fala disso pra outra mulher, não se fala disso entre amigas, não se fala de um problema na sua vagina com ninguém. Afinal, é uma vagina. Sim, todas temos uma, mas... ai, caramba, eu nunca disse que fazia sentido. Simplesmente não se fala de vagina entre mulheres, mesmo que todas tenham uma. Ponto.

Só que eu tinha que descobrir o que era aquilo. Eu tinha que saber o que havia de errado comigo. Saber porque tinha acontecido comigo, como tinha acontecido, e como se consertava. Então eu criei coragem, repeti mentalmente trezentas vezes “ela é a sua mãe, ela vai entender” e fui conversar com a pessoa que me pôs no mundo.

A operação começou muito bem, enchendo a sala de instinto maternal: “O quê, você está com um problema, minha filha? Um problema de mulher? Claro, venha, sente-se, vamos conversar...”. E aí eu disse o que era.

A reação foi um misto de surpresa com repulsa. Quer dizer, onde eu estava com a cabeça, certo? Eu fui falar com uma mulher, com a minha mãe, sobre um problema na minha vagina. Claro que ela ia fazer aquela cara de nojo e cortar logo o assunto dizendo que tava tudo bem, que devia ser normal e ponto. “Não me lembro de nada errado na sua vagina”, foi o que ela disse, me enxotando pra longe como quem diz “Eca, por que logo eu tenho que ouvir sobre isso?”. Ficou a promessa de uma visita ao ginecologista, e só.

Desnecessário dizer, a reação dela acrescentou uns 50kg aos meus ombros.

Vivi com aquelas dúvidas por mais um bom tempo, no fim tive que apelar para o santo Google. Eis o veredito: eu tenho hipertrofia labial, e como o prefixo “hiper” sugere, é uma quantidade extra de pele no(s) lábio(s) da vagina. É genético, não é a coisa mais bonita do mundo, mas não é uma aberração e existe uma cirurgia relativamente simples pra “consertar”. A razão pela qual minha mãe nunca notou nada é óbvia: lábios só se desenvolvem na adolescência. Quando eu era criança, minha vagina era igual a de qualquer outra, mas quando eu fiquei mais velha a hipertrofia apareceu. Fim.

Hoje eu tenho bem mais informação sobre o que exatamente é o meu “problema” -– agora com aspas, porque não é nenhuma maldição. Ainda penso na cirurgia (a labioplastia, que me parece até estar na moda), mas não por motivo estético, e sim porque esse excesso de pele às vezes gera desconforto (não queira saber o que é estar no meio de uma caminhada e sentir um beliscão . Não é legal). E tal qual meus seios, me dei conta de que a minha vagina também é só mais uma dentre milhões de outras mais. Uau.

Agora me diz: não era pra isso ter sido óbvio desde o início? Me dói pensar que outras adolescentes vão passar pela mesma coisa: a descoberta, o pânico, carregar um "segredo" que pesa quilos, morrer de vergonha de falar do assunto, se encher de coragem só pra ser tratada como se ninguém quisesse saber de uma coisa tão “nojenta”. Tudo o que eu sei eu descobri sozinha, levei anos pra me dar conta de que não havia motivo pra pânico. Porque a gente tem que passar por esses perrengues? O que tem de tão vergonhoso no nosso corpo de mulher? Todo esse tabu, toda essa frescura só serve pra torturar a vida da gente.

Continue escrevendo, Lola, que ainda deve ter muita gente carregando pianos por aí.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

GUEST POST: SOU UMA PESSOA MELHOR HOJE

Perceber quando os outros estão sendo cretinos e preconceituosos não é tão difícil, mas enxergar o preconceito em nós mesmos, é! É aquele negócio, né? Em toda pesquisa é igual: você conhece algum racista/homofóbico/machista, ou você acha que o Brasil é um país preconceituoso? 90% responde que sim, conheço; sim, o Brasil é preconceituoso. Aí a outra pergunta é: e você, é racista/homofóbico/machista? Não dá nem 10% que diz sim! Ou seja, preconceituoso é sempre o outro. Então meus sinceros parabéns pra Maria Ângela por ter parado pra refletir e ter visto o que ela estava fazendo de errado. Isso realmente é muito louvável. Acho que quando a gente se torna mais consciente, se torna também um ser humano melhor. Fico toda boba que eu posso ter participado um pouquinho do auto-descobrimento de alguém!
Obrigada, Maria Angela, que permitiu que eu publicasse o email com seu nome porque, afinal, "Não tive vergonha de humilhar os outros, também não terei de apontar meus próprios erros".

Resolvi te escrever porque tenho me dado conta de muitas coisas que antes passavam despercebidas com relação a preconceito e auto-aceitação...
Não vou dizer que o teu blog me converteu e que agora eu sou feminista; ainda estou muito longe disso, porém mais consciente do que é "meu" e do que carrego porque "me deram pra carregar", entende? Mas é tão incrível quando a gente percebe que está sendo boçal, fútil, cretina e cruel toda uma vida que, sinceramente, cheguei a chorar várias vezes lendo teus posts (e várias outras lendo os comentários). Hoje estou lendo aquele do dia da Consciência Negra e já me emocionei várias vezes com relatos das participantes.
Lola, sério. Assim, eu sempre fui meio acima do peso, mas quando me dou conta da vida boa que tive (em termos de "não-bullying"), acho que sou uma guria de sorte! Parando pra analisar, era muito mais fácil eu estar do lado que discrimina do que do discriminado (vergonha, eu sei...). Aí quando conheci teu blog e fui lendo os posts anteriores, minha ficha foi caindo e eu vi o quão má eu estava sendo e me envergonho disso. E, Lola, não só com desconhecidos não... com gente da minha família, com minha irmãzinha (que tem 17 anos, mas será sempre o meu baby)! Ela tem o cabelo "ruim" e tá meio gordinha... Apesar disso, vive em paz, tem sua turminha, passeia, enfim. Agora imagina ter uma cretina dentro de casa não te dando mole?! Coitada, né? E a pobre ainda se espelha em mim! Sério, acho que sou podre demais pra inspirar alguém. Também crucificava outra irmã por ela não fazer as unhas, tirar o bigode... Como disse, agora estou um pouco mais consciente, então dou algumas dicas pra ela (que por causa da gordura, tá com pré-diabetes), mais quanto à saúde mesmo, sabe? E evito ficar criticando: se ela se sente bem assim, ótimo! Não quero ser eu a destruir a auto-estima dela! Me dei conta, agora, de que eu não gostava era de ver ela bem resolvida com seu cabelo, sua postura etc, porque eram coisas que incomodavam a mim, e que -- algumas -- eu acabei por modificar em mim mesma, para estar dentro de um "padrão". Que tola, não? Percebi quanto tempo e dinheiro gastei tentando mudar o que sou pra agradar a terceiros. Poderia ter empregado esse dinheiro de uma forma tão melhor! Ter usado o tempo pra estudar, namorar... Triste!
Agora no post da Consciência Negra, me vi sendo cretina mais uma vez, e mais uma vez com minha própria família. Minha avó materna é "parda" (negra, né? Isso de negro claro ou escuro não faz sentido, mas né? É assim que se referem a ela), e minha mãe herdou isso dela, apesar de o pai ser descendente de italiano. Eu também sou filha de "parda" com italiano e -- ó, glória -- saí branquíssima, de cabelo "bom". Mas quantas vezes, Lola, fiz piadas racistas, comentários que eu sabia que machucavam a mãe, a avó, os tios... só porque "eu tinha o direito", por ser branca. É ou não é cretinice? Pelo menos agora vejo o mal que fazia e procuro não fazê-lo de forma consciente (porque inconscientemente, às vezes escapa. Normal, quando se passa uma vida -- 29 anos -- sendo assim).
Ao contrário de você, Lola, eu quero ter filho. E você me fez questionar em que mundo eu quero que ele viva e que tipo de ser humano eu quero que ele seja. Se quero que ele seja bom, devo começar por mim, não é? E é por mim, pela minha mãe, pela minha família e pelos filhotes que terei em breve que quero ser uma pessoa melhor. Não quero ser só uma casca bonita -- mesmo porque meu tempo tá acabando (ano que vem chego aos trinta e com orgulho!).
Bom, Lola, o que eu queria te dizer é MUITO OBRIGADA! Obrigada por me fazer ver que mau ser humano estava sendo, o quanto eu tenho que melhorar, e também por ser um farol no meio dessa doideira de preconceito e maldade. Obrigada pelo blog, Lola. Ele realmente fez a diferença pra mim!

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

AMOR E REVOLUÇÃO, MAIS ACERTOS QUE ERROS

O chato de acompanhar uma novela é que a gente fica meio escrava da TV, precisa ver quase todo dia. E o chato de ver uma novela que não é da Globo é que você fica sem todo o aparato “jornalístico” que te conta tudo o que está acontecendo e vai acontecer, que cria o hype. Mas, enfim, venho assistindo Amor e Revolução, no SBT, há meses. Desde abril. E não sei quando vai acabar. Janeiro? A emissora já anuncia a próxima novela -– que não vou ver, lógico. Só vi esta (e acho que A&R e O Aprendiz foram os únicos programas que vi na TV este ano) por causa do tema. Afinal, vi a minissérie da Globo Anos Rebeldes, em 1992 (mantenho que sem ela não teria acontecido os caras pintadas, e sem eles, não teria acontecido o impeachment do Collor). Se A&R fosse feita e transmitida pela Globo, todo mundo estaria falando nela. A gente estaria exigindo a punição dos militares torturadores, fazendo estardalhaço pela Comissão da Verdade... Esse pessoal impune tem muita sorte da novela nunca ter passado dos 5% de ibope.
De minha parte, amei a novela. Podem falar o que quiserem, que alguns atores deixaram a desejar, que os diálogos eram fracos, que as cenas de ação eram de quinta... É novela, pô! Pra mim tanto faz se é novela da Globo, do SBT ou da Record. Não espero realismo nem de novela, nem de filme de Hollywood. Eu “suspend my disbelief” e vou fundo. E a história de A&R foi mais ou menos verdadeira. Quero dizer, houve uma ditadura militar sanguinária no Brasil (não uma ditabranda, como quis reescrever um jornal). Houve tortura. Houve guerrilheiros que lutaram contra ela. Certo, esses guerrilheiros certamente não estavam lutando em abril de 1964, ao contrário do que a novela mostrou. Mas A&R foi totalmente de esquerda. Os vilões foram os militares e torturadores do Dops.Como sempre, vilão é o papel mais suculento das tramas, e em A&R quem brilhou foi o Nico Puig, como o Major Filinto. Aliás, gostei também de seu pai, o general Guerra (Reinaldo Gonzaga). Só não me perdoo por ter passado a novela inteira achando que quem fazia a mãe do major e também do mocinho bobalhão da história era a Nívea Maria (não era, era a Glauce Graieb). A novela teve várias crises longe das câmeras, nos bastidores mesmo. Primeiro cometeu-se a besteira extraordinária de picotar os depoimentos de personagens reais no final de cada capítulo. Mais pra frente, simplesmente tiraram esses depoimentos, que eram fenomenais. Alegaram terem tirado porque só gente de esquerda aceitou depor. O pessoal de direita não teve coragem de dar as caras e defender suas atrocidades. Olha, dane-se. Se eles foram convidados a gravar depoimentos e se recusaram, problema deles. Não tem que haver equilíbrio ideológico em obra nenhuma, ainda mais quando falamos de uma ditadura militar.Depois a novela ficou mais light, menos política. Parece que muita gente reclamou das cenas de tortura (definitivamente exageradas, mas realistas) nas primeiras semanas de novela. Aí o autor Tiago Santiago decidiu cortar todas as cenas de tortura, até chegar ao final ridículo em que os investigadores do Dops giravam a vítima de um lado pro outro. Havia outros momentos absurdos, como o fato de todo mundo em fuga se esconder da polícia sempre nos mesmos lugares: na igreja, na cantina, no teatro, e no apartamento da família Paixão (um lugar um tanto estranho, considerando que a filha, mocinha da novela, era uma militante política, e o pai, um jornalista contra o regime). Também não é segredo pra ninguém que o maior sucesso da novela foi ter protagonizado o primeiro beijo lésbico. O autor se entusiasmou com a audiência, disse que haveria também um beijo gay (entre o diretor de teatro e o carcerário, que chegaram a formar um par, com direito a algumas discussões interessantes partindo do filho carcerário, pedindo pro seu pai militar aceitá-lo como ele é). Aconteceu alguma coisa que não saberemos (ordens de cima, do dono do emissora? Censura da grossa? Rejeição do público?), mas de repente toda essa subtrama gay foi relegada a segundo plano. O produtor de teatro praticamente sumiu. Seu beijo nunca foi mostrado. E todo o desenvolvimento do casal lésbico foi só falado, nunca mais exposto. O autor chegou a anunciar um segundo beijo lésbico, que pelo jeito foi gravado -- e nunca foi ao ar. Como muitas tramas na novela (principalmente a dos padres), a da advogada Marcela (Luciana Vendramini), lésbica assumida, precisando fingir pros seus pais que ela iria se casar com um homem também virou mote cômico. Até aí ainda vai. O problema foi quando ela decidiu transar com um jornalista, partindo o coração de sua paixão, Marina (que demorou um tempão pra aceitar que estava apaixonada por uma mulher).O que eu vi nesta semana e na última foi um total retrocesso: Marcela se deixando seduzir por Mário, que a vê como virgem (porque ela nunca foi pra cama com um homem!); ela fora da personagem, frágil e insegura. Só aí que eu me toquei: a noite de sexo entre Marcela e Mário servirá para que ela engravide. O final feliz obviamente será entre ela e Marina, a dona do jornal (e a atriz mais bonita da novela, Giselle Tigre), que juntas criarão um bebê.Ótimo, legal, mas convenhamos: havia mil e uma formas de obter o mesmo resultado (uma gravidez) sem toda essa ladainha de “você não fez sexo até transar com um homem, mocinha”. E eu tô chutando tudo isso. Li também que é o público que vai decidir com quem Marcela vai ficar. Putz, um autor de novela não tem que ser democrático! Ele criou esse universo ficcional; cabe a ele decidir o que será do casal lésbico. Deixar a decisão pros espectadores é como fazer plebiscito pra maioria decidir se vai ou não conceder os mesmos direitos constitucionais a uma minoria. Toda essa confusão de Marcela, lésbica durante toda sua vida, apaixonada por Marina desde o início da novela, de repente querer transar com um pamonha feito o Mário foi um belo derrapão na última fase, sem dúvida. Porém, o saldo geral é extremamente positivo. Foi uma novela feminista e de esquerda. Muitas mulheres fortes e decididas na trama, a começar pela heroína, que fez treinamento de guerrilha em Cuba e é anos-luz mais inteligente e preparada pra luta que seu par romântico.Lúcia Veríssimo foi outra que interpretou uma guerrilheira, com direito a uma coluna feminista num jornal! Um rapaz lindo com metade da sua idade se apaixona por ela, e ela trai seu marido, o também guerrilheiro Batistelli (Licurgo Spinola), que é comunista mas machista, explicando-lhe: “Meu corpo não é de ninguém. Ou melhor, ele é meu. Só meu”.Outra adepta do amor livre é a atriz Stela (Joana Limaverde), que vive brigando com o namorado por não aceitar ser só dele. Lá no meio da trama ela faz um aborto, que rende inúmeros bons debates, e surprise surprise, sua personagem não é punida por isso! E, ainda no primeiro semestre, uma estudante (que logo também entraria pra luta armada) é beijada à força por um rapaz. Contrariando todos os clichês de que a donzela será domada, ela morde a língua dele e lhe diz: “Assim você aprende a nunca mais tentar calar minha boca com um beijo”. E por aí vai. Amor e Revolução é uma prova de que a televisão pode influenciar corações e mentes de forma positiva. Eu ficarei com saudades. Mas, por favor, não permitam que a novela tenha um final tão infeliz, esse da lésbica assumida ficar com um homem só porque é isso que a sociedade espera das lésbicas -- que sejam salvas.