quinta-feira, 30 de abril de 2015

GUEST POST: O MASSACRE DOS PROFESSORES DO PARANÁ

Publico aqui o relato de uma paranaense que participou ativamente dos protestos dos professores de ontem, em Curitiba, que rendeu mais de duzentos feridos no que a mídia covardemente decidiu chamar de "confronto". 
Novilíngua: "confronto", não massacre
O termo correto quando uma polícia imensa e fascista joga bombas, balas de borracha e pitbulls em manifestantes é massacre.
O relato é publicado anônimo porque ela está com medo de ser perseguida por uma corja que, ontem, vibrou quando a polícia atacou professores.

I - A batalha da ALEP-PR no dia 29 de abril de 2015
Acho que este tópico é o mais doloroso para escrever. O Brasil inteiro testemunhou ao vivo o que o governo do Paraná fez com os servidores ontem (aqui, diversos vídeos).
Com o pretexto de que a situação de caos foi iniciada por pessoas ligadas ao movimento Black Bloc, os comandantes da Polícia Militar protagonizaram cenas de guerra no Centro Cívico de Curitiba. Legitimados por uma ordem judicial de manutenção da "segurança" dos deputados, um efetivo policial de mais de mil homens (muitos convocados do interior do Estado) cercou a Assembleia Legislativa para garantir que o Projeto de Lei que é no mínimo duvidoso fosse aprovado (e foi!). [O projeto mexe na Previdência dos servidores públicos do Estado: usa dinheiro deles para quitar dívidas geradas pelo governo corrupto do PSDB].
No início da semana foi concedido um habeas corpus liberando a entrada dos manifestantes nas galerias do prédio da ALEP-PR. Ontem foi decidido que apenas os representantes sindicais teriam esse direito. Estes representantes se recusaram a entrar em razão de “ou entra todo mundo ou não entra ninguém”. Não tenho conhecimento do conteúdo da liminar concedida, mas é no mínimo estranho que o povo não possa ocupar o espaço que lhe é seu por direito constitucional. 
O que havia de tão grave nesse Projeto de Lei que os professores foram impedidos de acompanhar? Mais ainda, uma Assembleia sitiada e guardada por mais de mil homens da Polícia Militar revelava que a situação era GRAVE!
O mais chocante é que em diversos momentos alguns parlamentares suscitaram questões de ordem para notificar a mesa diretora da ALEP-PR presidida por Ademar Traiano de que lá fora havia uma centena de pessoas feridas, outras sitiadas e sem possibilidade de atendimento médico simplesmente porque as ambulâncias não conseguiam passar. 
Veja quais deputados
do PR votaram a
favor de mexer na
previdência dos
servidores estaduais
O deputado se limitou a dizer que a questão de segurança externa ficava a cargo da Secretaria de Segurança Pública, esta presidida por Fernando Francischini, e que a sessão deveria continuar.
A sessão continuou e era possível ouvir bombas a todo o momento enquanto a votação seguia. Isso demonstra um claro desprezo pelos professores, suas causas e sua própria vida. Relembrando que muitos daqueles que estavam na votação foram eleitos por pessoas que lá fora eram tratadas com bala de borracha, spray de pimenta, gás lacrimogêneo, jato d’água e cassetete, ações permitidas por uma ordem judicial cumprida pelo Secretário de Segurança. Se estes deputados que votaram favoravelmente ao projeto dormiram tranquilos eu não sei.
Lembrando que um deputado que tentou descer a rampa da Assembléia para chegar aos manifestantes e tentar entender a situação acabou sendo mordido por um cão da PM, assim como ocorreu com um cinegrafista da TV Bandeirantes que também foi ferido por um cão da raça pitbull enquanto filmava o caos.
Alguns policiais se negaram a cumprir a ordem e acabaram presos. Infelizmente os PMs se sujeitam a um código de condutas diferenciado, especialmente o Código Penal Militar [esta informação foi desmentida pela PM]. Aquele que não cumpre a ordem de bater em professorxs que educam seus filhos comete o crime de “insubordinação”, que pode levar a uma pena de até 2 anos (vide artigo 163 do Código Penal Militar). Esses policiais possuem duas saídas: a) cumprir a ordem e participar do cenário de guerra; b) ser preso, responder criminalmente e ser expulso da corporação. 
Por pouco este professor não perde o
olho com uma bala de borracha
Não estou defendendo a truculência, longe disso. O que eu quero dizer é o seguinte: o sistema foi criado para isso. Com esse respaldo legal se alguém dá uma ordem absurda dessas, ela será cumprida simplesmente porque um PM não poderá se recusar. Entende o quão perverso é tudo isso?! Triste. Por isso se discute a “desmilitarização da Polícia Militar”. O assunto é urgente ou ficaremos eternamente reféns de um sistema que massacra manifestantes.
Estou em luto pela educação do Paraná.
Pitbull da PM morde cinfegrafista
II – Fevereiro: Deputados em camburão e sessão no restaurante da ALEP-PR
Lembrando que os professores estaduais entraram em greve em fevereiro, rumaram para Curitiba e foram tratados de forma semelhante. A greve foi encerrada após o comprometimento da retirada do Projeto de Lei de pauta para que uma discussão fosse feita. ISSO NÃO FOI REALIZADO!
Imagem icônica de fevereiro: deputa-
dos entram na Assembleia dentro de
camburão
Em fevereiro os deputados para entrar na ALEP-PR e furar os manifestantes utilizaram de um camburão da Polícia Militar. Como as galerias do plenário estavam ocupadas, a sessão se deu no restaurante da Assembleia numa tentativa de "fugir" dos manifestantes. Foi uma das cenas mais lamentáveis do nosso Estado! Uma vergonha sem precedentes.
Deputados realizam sessão no
refeitório da Assembleia, em fevereiro
Os professores deliberaram pela greve na semana passada em virtude desse projeto maquiavélico ter retornado para a pauta de votação da ALEP-PR sem qualquer discussão com os servidores.
O governo divulgou um vídeo em que "explica" que o direito previdenciário dos servidores estaria resguardado.
Acontece que o Ministro da Previdência afirmou essa semana que se o projeto for considerado ilegal, o Paraná terá seu certificado de regularidade previdenciário cassado. Mas isso não deteve os deputados e muito menos o governador, que segue justificando o injustificável.
O que esse projeto visa? 
O governador quer alterar a previdência de servidores, transferindo ao fundo previdenciário composto por contribuições dos servidores estaduais os aposentados, desonerando o Estado de suas atribuições. O que não é possível saber é se os aposentados terão seus direitos de fato resguardados. Explico: pode ser que no futuro alguém queira se aposentar e simplesmente escute: não temos como pagar. Aliás, essa é a razão pela qual o Ministro da Previdência afirmou que irá acompanhar a situação do projeto.
III – Razões emergenciais que levaram a esse Projeto de Lei 252/2015
O governo afirma que não é mais possível suportar a Previdência dos funcionários, fazendo com que ela seja transferida para um fundo autônomo. Entre uma das maldades, está a autorização do Estado para retirar do caixa da previdência até 2 bilhões por ano para pagamento de servidores da ativa e aposentados, o que pode acabar com a previdência em até três anos!
Isso vem com um conjunto de medidas do governo estadual, que se diz endividado. Esse ano houve um aumento de 40% no IPVA e outro aumento no ICMS. No mandato anterior, o governo elevou as taxas do Detran em até 271%!
O que ninguém consegue entender é como tudo chegou a esse ponto se a Receita (aquilo que a gente possui e arrecada) só aumentou durante o mandato dele. O governador culpa o governo federal por não repassar os valores devidos, mas os números desmentem toda essa situação.
Professora em desespero chora durante
manifestação ontem
Sempre que Beto Richa termina uma entrevista ele utiliza um jargão: “O melhor está por vir”. Posso dizer que esse melhor até agora não chegou.
As nossas universidades tiveram um corte de verbas enorme durante a gestão desse governador com a hipótese de – pasmem – fechar por ausência de verba! Eu estava na universidade e vivi essa gestão e posso dizer: foi mais que péssima!
IV – 1988: o passado é semelhante ao presente
Curitiba, 1988
Eu gostaria de dizer que o dia 29 de abril foi algo isolado na nossa história. Infelizmente não foi. Nossa história já foi manchada em outra oportunidade.
Em 1988, o então governador Álvaro Dias [na época no PMDB, hoje senador pelo PSDB, mesmo partido de Richa] ordenou que a Cavalaria da PM atuasse contra os professores manifestantes que buscavam um salário mais justo. 
Eles estavam acampados nessa mesma praça onde houve cenário de guerra no dia 29 de abril. Saldo da atuação: casco de cavalo pisoteando a cabeça de professores, cassetete, bala de borracha e todo o aparato militar que vocês possam imaginar. 
O que nós, a população do Paraná, fizemos? Elegemos Alvaro Dias para senador (está lá até hoje). 
Como pensam os fascistas (clique para ampliar)
V – Síntese
Procurei reunir o máximo de informações possíveis para dar um panorama da grave situação que estamos vivendo. Provavelmente acabei me esquecendo de algum detalhe, mas é tanta turbulência que é até difícil pensar.
Nossos professores estaduais seguem com uma greve que foi considerada ilegal pelo nosso judiciário estadual. Parece que não há saída ou qualquer possibilidade de diálogo. Peço que apoiem os nossos professores que hoje estão de luto, feridos pela insensibilidade de alguém que assistiu toda a situação do alto do Palácio do Iguaçu e justificou a atuação bélica para a nossa surpresa.
O que é preocupante é que temos mais de três anos de mandato desse atual governador. Como o Paraná irá terminar em 2017 não é possível saber, mas posso adivinhar que o “melhor não está por vir”.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

FEZ A COISA CERTA E TEVE QUE MUDAR DE ESCOLA

Este foi meu diálogo recente com a R:

R.: Tenho 16 anos e estudo em uma escola particular.
Hoje, enquanto um professor passava matéria, ouvi um monte de risadas vindo do fundo da classe (sento na primeira carteira). Me virei para ver do que se tratava, e era um garoto chamando a atenção de uma menina. Assim que ela o ouviu e perguntou o que queria, ele tirou seu pênis pra fora, o segurou nas mãos, e ficou balançando pra ela ver. A reação dela foi gritar "Nossa, que nojo!"
Logo depois, já achando absurda a situação, as risadas voltaram. Olhei para trás de novo. Tinham duas meninas dormindo durante a aula, e o mesmo menino que mostrou o pênis, foi em direção a uma das meninas que dormia, tirou o pênis novamente de dentro da calça, e ficou passando no rosto dela, enquanto um de seus amigos filmava todo o ato. (O professor não percebeu nada disso).
Fiquei indignada com o que aconteceu. Deveria ter dito algo na hora, mas me surpreendeu tanto, que fiquei sem reação. Após a aula, fui falar com o coordenador.
A direção, por enquanto, os suspendeu. Mas duvido que levem o caso á diante. Não sei quem será a próxima vítima desses garotos. Pode ser qualquer uma. É uma classe de  45 pessoas, sendo que mais da metade é mulher.
Depois de os dois terem ido embora da escola, mandaram mensagens no grupo de whatsapp da classe dizendo "Quem fica inventando coisa minha ae, quero prova, bando de fdp, se eu descobrir quem foi, vou acabar com a vida da pessoa." Na hora, tomei responsabilidade. Disse que não inventei nada, apenas falei o que vi. E então seguiram-se as ameaças. Ele diz que não sei do que ele é capaz, que vai infernizar a minha vida, me xingou de cachorra, mal  comida, e afins.
Sinto-me ameaçada e não sei como lidar com isso. Nós mulheres vivemos apreensivas ao sair nas ruas, cientes de que a qualquer momento podemos sofrer algum tipo de assédio.
Você tem algum conselho pra esse tipo de coisa?

Eu: Que horror! Tanto isso que aconteceu em sala de aula quanto as ameaças são inadmissíveis. Tire print de tudo e leve à coordenação novamente. Se houver ameaças mais pesadas, leve os prints à polícia e faça BO.
Vc conhece os pais desse rapaz? Eles são ricos, de classe média alta? Poderia ser interessante, de repente, seus pais marcarei uma reunião com os pais dele. Ele está completamente errado, e não tem direito de fazer o que está fazendo. 
Lembre-se, vc é menor de idade, ele também, os pais são guardiões legais. Os pais dele têm que saber o que o filho está aprontando, e saber que existe sim possibilidade d'ele ir parar numa Feben da vida, o que seria aterrorizante.
Tome cuidado, porque vc está sim numa situação de perigo. Há algum coletivo feminista na sua escola? Se não houver, comece um.
Há alguma professora da escola que é mais progressista, que parece ser feminista? Pode ser bom falar com ela.
Não tenha vergonha. Vc está certa. Talvez seja mais eficaz falar pras pessoas (pelo menos as próximas) o que aconteceu do que esconder.
Abração, e me mantenha informada, por favor.

R., cinco dias depois: Hoje, embora os meninos não tenham ido pra aula, a minha classe inteira está a favor deles. Minha mãe conversou com o pai do garoto que fez as ameaças, e ele disse que acha que eu tenho toda a razão. Quer que o filho me peça desculpas pelas ameaças. Mas ele não o fez.
A sala, por outro lado, fica me olhando torto, gritando no meio da aula indiretas pra me atingir. Indiretas no twitter... Ódio pra todo o lado. Você recebe muitas mensagens de ódio também, né? Muito piores do que as que estou recebendo... Não sei como você consegue lidar com isso, sério. Chorei muito desde que tudo isso começou e a única solução que consigo pensar é ir para outro colégio.
Você deve ser muito forte pra aguentar tudo isso!

Eu: Que absurdo tudo isso! Acho que não deveríamos ficar surpresas neste mundo machista que a turma ficou do lado dos garotos. Mas mesmo as meninas? E a menina em que o rapaz estava passando o pênis no rosto enquanto ela dormia?
Pois é, eu recebo muitas ameaças, direto, e é mesmo uma droga. Não se se aguentaria tudo isso se tivesse 16 anos.
Será que mudar de escola resolve? Bom, espero que sim! Se isso te consola, saiba que vc está com toda a razão. Vc fez a coisa certa! Eles é que estão errados. E vc conseguiu ajudar algumas meninas. Vc teve muita coragem, coragem que esses covardes não têm. 

R.: Lola, a menina em quem ele passou o pênis acabou por ficar do lado dele. Disse que ele era amigo dela e que foi apenas uma brincadeira.
O que mais me decepciona é o machismo presente nas meninas... Mas acabei por mudar de escola. Tudo piorou muito quando os garotos voltaram às aulas.
Muito obrigada por ter escutado o meu caso na escola Desejo tudo de melhor pra você, você é uma mulher forte e com bons valores. Sério, te admiro muito!

Eu: Que absurdo! Fico muito revoltada com essa história. Vc fez a coisa certa e vc que teve que mudar de escola!
Já já vc vai pra faculdade e fica livre de muitas dessas pessoas sem noção...

terça-feira, 28 de abril de 2015

GUEST POST: SE EU FOSSE PRESO, PREFERIRIA IR A UMA PRISÃO FEMININA

H., de 28 anos, me enviou seu texto instigante sobre o caso Verônica.

Caso Verônica já ganhou
manchetes internacionais
Antes de mais nada, gostaria de dizer que o seu foi o texto mais honesto — e, na minha opinião, correto — a respeito do que aconteceu. Acompanhei o caso desde que saíram as primeiras imagens, mas não "tomei" nenhum lado porque... bom, internet é um jogo perigoso de telefone sem fio, e prefiro formar minhas ideias a respeito depois de ver todos os fatos. Por fim, foi melhor, já que muita coisa foi distorcida, de todos os lados, a respeito tanto do crime que Verônica cometeu, quanto o crime que cometeram contra ela. A única coisa que eu discordo do que você falou é que Verônica deveria ir para uma prisão feminina.
Eu sei, eu sei, opinião perigosa, mas tenho um motivo muito pessoal para pensar assim: sou homem trans [uma pessoa que foi designada mulher ao nascer e depois fez a transição para homem], e jamais, em nenhum momento, gostaria de ser colocado numa prisão masculina.  
Complicado, né? Vi algumas pessoas levantando a questão em seus comentários, inclusive indagando se algum homem trans poderia opinar a respeito, e, pois bem, aqui estou. Me colocando em uma situação hipotética onde eu, se cometesse um crime passível de cadeia, jamais me daria ao luxo de escolher um presídio que combine com minha identidade de gênero. E isso por um medo bem simples (que acredito que aterroriza qualquer pessoa que nasceu com uma vagina), e esse motivo é estupro.
A moral é que não tem hormônio e cirurgia que mude minha condição. As cirurgias de transição de mulher --> homem estão anos luz atrás das de homem --> mulher, e mesmo que eu mutilasse a carne do meu braço para criar um pênis não-funcional (ou aumentasse o clitóris para um tamanho pífio), eu jamais teria como esconder por muito tempo de companheiros de cela que eu nasci mulher. E não apenas por questão de corpo (a cirurgia de genital é algo que nunca passou pela minha cabeça, pois o resultado me assusta muito mais do que me tenta), mas por criação mesmo. 
Nada que eu fizer na minha vida adulta vai mudar o fato de que eu nasci e fui criado como mulher até o inicio da vida adulta, pelo simples motivo de que não tinha como ninguém saber a respeito da minha identidade de gênero antes de mim. Não me perguntaram se eu me identificava com o gênero feminino quando nasci, não me perguntaram se eu me identificava com o gênero feminino quando fui para a pré-escola ou para o ensino médio. Eu fui criado como menina, e como ninguém ao meu redor era telepata, as marcas da socialização feminina estão nas minhas costas até hoje.
No geral, falar a respeito de socialização feminina/ socialização masculina é um tabu muito grande dentro do transfeminismo, e nunca me senti à vontade de falar alguma coisa a respeito disso em público por medo de perseguição. Homens trans são muito silenciados e invisíveis em qualquer vertente do feminismo e da comunidade LGBT, especialmente porque nos é negado nosso sofrimento em relação à misoginia. Falam que admitir que homens trans já passaram/ainda passam por misoginia é diminuir nossa condição masculina, mas admitir que eu sofri e ainda sofro misoginia é algo que nunca me ofendeu, ao contrário. 
Minha história de vida não contém a narrativa clássica da transexualidade, e pela maior parte da minha vida, tive uma apresentação extremamente feminina. Minha família, no geral, é bem aberta, mas são todos humildes, e com uma visão bem clássica do que é ser homem e do que é ser mulher, e foi num ambiente muito tradicional que fui criado. Nasci com uma vagina, e isso me fez ter uma infância e adolescência similar à de muitas mulheres cisgêneras brasileiras. 
Desde que comecei a falar, fui mandado a abaixar o tom, me abaixar, me encolher, diminuir meu tamanho e prezar a delicadeza. Noiei com peso pois me diziam que só poderia ser bonit"a" se fosse magr"a", e me foi privado o acesso a muitas coisas que eu tive interesse mas não eram tipicamente femininas. Meu raciocínio lógico é mais fraco pois meu interesse pela matemática foi tolhido quando ainda estava no ensino fundamental (pois "meninas são naturalmente mais fracas em exatas", dizem por aí), meu tom de voz carrega a pressão de abaixar e afinar a voz, minha linguagem corporal ainda tem resquícios dos comandos de delicadeza. 
Cada fibra do meu ser carrega minha história de criação feminina, e não tem corte de cabelo, hormônio ou cirurgia que mude isso. Isso não me machuca nem me magoa: eu abraço meu passado como abraço meu presente, e justamente por isso a ideia de ser a única pessoa com uma vagina em um ambiente lotado me assusta tanto quanto qualquer mulher. Eu seguro as chaves de casa entre os dedos quando passo num beco escuro, eu corro do ponto de ônibus até a entrada do meu apartamento quando volto do trabalho à noite. Esse medo sempre existiu e esse medo persiste pois eu não sou inocente. Sei que não vivo em uma utopia, e sei a condição em que estaria numa prisão masculina.
Nessa situação hipotética onde eu cometesse um crime e fosse para uma cadeia masculina, não demoraria muito para descobrirem meus genitais. Banheiros coletivos, celas coletivas, chuveiros coletivos... e não é só o corpo. Como falei, minha voz e minha linguagem corporal ainda carregam o peso da socialização feminina, e não é algo que eu ache que jamais vai passar, por mais visivelmente masculino que eu seja. 
Muita coisa a respeito da minha vida e da minha história delata minha condição de homem transexual, e em um mundo onde mulheres masculinas (lésbicas ou não) sofrem estupro corretivo todos os dias, é ingenuidade pensar que os homens do presídio me veriam como qualquer coisa além de uma mulher, portadora de uma vagina. Minha identidade de gênero já seria tolhida logo de cara, sequer seria minha escolha. Nessa circunstância, preferiria largar minha identidade de gênero e ser visto como lésbica masculina em uma distopia da minha própria vida em uma cadeia feminina do que ser saco de pancada e vítima de estupro coletivo numa cadeia masculina. 
Alguém poderia argumentar que uma travesti sofreria o mesmo numa prisão masculina, mas não tenho como saber pois não sou travesti. Talvez isso abra uma discussão para onde todos nós, transexuais, deveríamos ser mandados em caso de crime, não sei. 
[Perguntei ao H. o que ele, como homem trans, teria a propor, pois me parece errado e segregacionista ter celas apenas para pessoas trans. Seria esta a única saída para pessoas trans não serem violentadas, espancadas e mortas numa cadeia? Ele respondeu:]
Honestamente, eu não sei. Não acho que nenhum homem trans, transicionado ou não, estaria a salvo numa prisão masculina, da mesma forma que uma mulher trans completamente transicionada não estaria. Posso te dizer pessoalmente que, por toda minha história de vida, mesmo transicionado, eu jamais perderia o sentimento de horror à ideia de ser colocado numa prisão masculina, mas a questão como um todo é algo muito complicado pra mim, então acho que isso é algo que deveria ser discutido com um pouco mais de delicadeza.
No geral, as pessoas de dentro do ativismo pulam direto para a possibilidade de todo mundo ser colocado no espaço de seu gênero (e não sexo), e isso é meio que jogar os homens trans pra debaixo do trem, sabe? Por mais triste que eu ache essa possibilidade, por enquanto, acredito que o melhor é separar as cadeias por sexo biológico mesmo. Na minha ideia de uma separação assim, no mundo atual (onde as cirurgias de mulher para homem são muito mais precárias e experimentais que de homem para mulher), mulheres trans que passaram pela transição completa poderiam ir para presídios femininos, mas até a transição masculina melhorar, homens trans iriam para feminina também. Mas mesmo isso é difícil dizer. 
Não sei encontrar um meio termo: não é justo botar mulheres trans com homens cis, mas também não é justo botar algumas mulheres trans criminosas que já tenham agredido e estuprado mulheres, e possam botar em risco outras presas. Como qualquer preso/a, pessoas trans deveriam ter segurança, tanto de não sofrerem abusos, quanto de não serem humilhadas/os por sua condição, mas o resto também deve ser considerado.
Enfim, eu realmente não tenho uma opinião definitiva a respeito disso e estou disposto a ver outras propostas, mas pra minha própria vida, pra minha própria experiência, como falei acima, escolho a dignidade do meu corpo a pronomes.

Meus comentários: Entendo perfeitamente a sua preocupação, H. Se a vida numa prisão já não é fácil para ninguém, ela certamente é mais perigosa não só para pessoas trans, como também para pessoas cis que não sejam heterossexuais. Assim, muitos presos gays e lésbicas que podem esconder sua orientação sexual preferem fazê-lo, já que os riscos de, por exemplo, um homem gay ser estuprado e contrair Aids numa prisão não são nada desprezíveis.
Pesquisei um pouquinho e vi que, de modo geral, as pessoas são designadas às prisões de acordo com seu sexo biológico. Assim, um homem trans como você iria mesmo para uma prisão feminina (onde sem dúvida estaria mais seguro; porém, homens trans também podem ser abusados nessas prisões, geralmente por guardas), e uma mulher trans iria para uma prisão masculina. Em algumas prisões, travestis e mulheres trans são colocadas em celas junto a homossexuais afeminados. Há vários casos no mundo em que mulheres trans ganham na justiça o direito de serem transferidas para a prisão feminina. 
Outro problema para pessoas trans na cadeia é que muitas vezes há interrupção nos remédios. Mesmo as que recebiam tratamento hormonal antes da prisão, com prescrição médica, têm esses seus direitos desrespeitados
De maneira geral, a comunidade LGBT parece preferir prisões próprias para pessoas trans. Pelo menos quando uma das primeiras prisões desse tipo foi aberta, na Itália, em 2010, houve comemoração. A Itália tem cerca de 60 prisioneiros trans.
Ano passado houve um avanço, que ainda carece de implementação: o Estado de SP elaborou uma resolução que estabelece normas de tratamento pra travestis e transexuais no âmbito carcerário. Essa resolução permite que a pessoa trans tenha a autonomia para decidir o gênero que quer manter enquanto estiver na cadeia.
Eu mantenho que a travesti Verônica, depois de julgada e condenada, tenha de cumprir sua pena numa prisão feminina. Ela não pode correr risco nem por em risco a segurança de outros presxs, pois todos estão sob tutela do Estado e devem ser protegidxs. 
Porém, enquanto o risco que travestis e mulheres trans sofrem na prisão está bem documentado, há pouquíssimos indícios de que elas seriam uma ameaça à segurança das prisioneiras cis.
Não é uma questão simples, e não há unanimidade nem entre ativistas LGBT. Só sei que o feminismo que eu defendo não exclui pessoas trans.